Revista O Globo, Domingo, 27/07/2008, pp. 15 e 16


Eduardo KAC

De passagem pelo Rio, o artista brasileiro radicado nos EUA fala sobre seus revolucionários projetos no campo da bioarte

 Marcelo Balbio

 

No início dos anos 80, Eduardo Kac, nascido e criado em Copacabana, chamava a atenção para a sua poesia fazendo performances pela cidade. Usava como palco lugares de grande movimento, como a Cinelândia ou a Praia de Ipanema. Era impossível ficar indiferente a ele. Tinha 20 anos, o porte atlético de quem jogava basquete e andava de skate e uma cabeleira que dava para fazer rabo-de-cavalo. Mas o que parava o trânsito — ou a fila na entrada do cinema, ou a praia — era a rebeldia do rapaz. Em algumas apresentações, aparecia usando camisetas com frases como “Pra curar amor platônico, só uma trepada homérica”. Em outras, vestia apenas uma minissaia rosa, exibindo o peito nu. Na época, estudava na PUC, tinha colegas de faculdade como Paula Toller e Fausto Fawcett, era amigo de Jorginho Guinle e trabalhava com Pizarro e Daniel Senise.

 

Kac hoje está com 46 anos, tem mais jeito de geek do que de skatista e as madeixas se foram. Mas a rebeldia está intacta. Adora cutucar o mundo, incitando debates sobre questões como as implicações culturais e éticas da engenharia genética ou os limites da interação virtual. Conceitos como telepresença, robótica, comunicação virtual, seres transgênicos, engenharia genética e biotecnologia pontuam a obra de Kac faz tempo. Já implantou um chip no tornozelo, com transmissão ao vivo pela TV, e inventou de transformar uma coelha albina numa criatura fluorescente verde. E assim virou um dos artistas mais respeitados do mundo, desafiando os limites da arte, da ciência e da tecnologia. Mas isso é o que a crítica especializada costuma dizer. Para Kac, os eixos de sua obra são a poesia e a filosofia. Experimentou (e faz questão de continuar experimentando) de tudo: literatura, gravura, fotografia, grafite, escultura. Mas são as instalações, algumas grandiosas, todas complexas, que volta e meia inquietam os visitantes de museus pelo mundo afora. Dos artistas que participaram da histórica exposição “Como vai você, geração 80?”, em 1984, ele era um dos poucos que buscavam caminhos que iam além das artes plásticas. De certa forma, era um estranho no ninho. Em 1989, bateu asas e foi morar nos Estados Unidos. Desde então, mantém uma casa em Chicago, onde vive com a mulher, Ruth, que conheceu quando ambos tinham 14 anos, e a filha, Miriam, de 13 anos.

 

— Chicago é onde penduro o chapéu. É onde mantenho minha coleção de livros e revistas de histórias em quadrinhos — diz Kac, “um bibliófilo e bibliômano” assumido, que se orgulha de ter um exemplar assinado de “Experiência Nº 2”, de Flavio de Carvalho, uma raridade de 1931, e de nunca ter jogado um gibi fora. — Mas vivo viajando. E Chicago favorece as viagens, posso ir fácil para a Ásia ou para a Europa. O ano passado, passei quase todo trabalhando na França.

 

Há quatro anos sem pisar no Brasil, desde que participou da XXVI Bienal de São Paulo, Kac está de passagem pelo Rio. Ele é a principal estrela do I Festival de Tecnologia de Petrópolis, em agosto, e já está aqui há mais de uma semana, a trabalho, claro, mas também a lazer, indo à praia, tomando água de coco e visitando a família, que continua morando em Copacabana. No dia em que chegou de viagem, encontrou-se com a Revista O GLOBO para uma conversa. De jeans Levi’s, tênis All Star, camiseta preta com desenhos de engrenagens, brincos e mochila onde carrega seu Mac, ele chega ao Oi Futuro, no Flamengo, sem aparentar cansaço. A cada pergunta, franze o cenho, espera o interlocutor terminar e começa a falar, sem pressa, descrevendo empolgado seu trabalho. Kac sabe que não é fácil botar em palavras o que faz, então não economiza em sinônimos, referências a trabalhos passados, citações de grandes nomes que admira, de Leonardo da Vinci a Marcel Duchamp. Está acostumado a esperar anos até que suas obras sejam assimiladas a ponto de serem compradas por colecionadores ou instituições. A obra “Gênesis”, seu primeiro trabalho a flertar com a arte transgênica, foi exposta em 1999 na Ars Eletronica, na Áustria, mas somente agora foi adquirida pelo Institut Valencià d’Art Modern, na Espanha. Para ela, Kac inventou o “gene de artista”, um gene sintético, criado pelo próprio, que é a tradução de um trecho em inglês do Velho Testamento para código Morse e depois de código Morse para DNA.

 

Também está habituado a levar anos planejando um obra. Para fazer “O oitavo dia” (2001), “uma verdadeira ecologia de seres transgênicos verdes”, mobilizou uma equipe de 20 pessoas, que trabalharam juntas por dois anos:

 

— Projetos vivos são de longo prazo. É difícil criar um ser vivo que a natureza, em anos de evolução, não criou. A criação da vida é lenta. Mas se a natureza não fez, não quer dizer que não seja possível.

 

Kac divide seu trabalho em três fases: a poesia holográfica (1983), a arte da telepresença (1986) e a arte transgênica (1997). Foi em 97 que ele cunhou o termo bioarte, e vem se dedicando a ela desde então. Entre seus últimos trabalhos estão os chamados “biotopos”, mostrados pela primeira vez na Bienal de Cingapura, em 2006. Em seus biotopos, quadros em que cria uma cultura ecológica com vários tipos de microorganismos, nada é definitivo. Dentro de uma moldura de metal, substratos orgânicos como terra e água formam desenhos ou textos que vão se modificando com o tempo, de forma imprevisível.

 

— Os biotopos podem ser visuais ou verbais. Crio textos ou imagens manipulando o metabolismo de microorganismos. A obra evolui conforme o ambiente, a luz, a temperatura etc. É uma obra viva — explica Kac, que apresentou sua primeira biopoesia em 2007, na França.

 

Quando já era famoso, causou alvoroço mundial, em 2000, com a obra “GFP Bunny”. O cerne do trabalho era a coelha Alba que, sob luz azul, ficaria verde. Num laboratório francês, a coelha recebeu uma proteína especial (a tal GFP, de green fluorescent protein, ou proteína fluorescente verde), encontrada em algas marinhas. Na última hora, o laboratório proibiu a exposição do animal, numa censura à obra de Kac. O artista não se fez de rogado e criou o movimento Free Alba. Alba fez barulho e até hoje alimenta a obra de Kac, que desenvolveu desenhos, textos, fotografias, esculturas e, no ano passado, gravuras em silkscreen, tudo inspirado nela.

 

— Meu caminho é a perseverança. Se me censuram, procuro outro lugar para trabalhar. O escândalo revela mais sobre os escandalizados do que sobre o artista — defende Kac, que há anos mantém vínculos com a o Instituto de Arte de Chicago e tem livros publicados pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology). — Existe crítica de arte, mas não crítica de ciência.

 

Mais conhecido no exterior, ele diz que nos últimos anos o Brasil tem prestado mais atenção nele. E está cheio de planos. Além de lançar dois livros pela editora Contra Capa, prepara duas exposições para novembro, uma no Oi Futuro e outra na Galeria Laura Marsiaj, que o representa desde 2002.

 

— Todo o trabalho do Kac é um questionamento — define Laura Marsiaj. — Em termos de aquisição, as pessoas são muito preconceituosas com o novo. Então, não é fácil trabalhar a obra dele, mas vendemos.

 

O crítico de arte Luiz Camillo Osorio, que chamou a atenção para a ausência do carioca na exposição “Onde está você, geração 80?”, em 2004, diz que o debate em torno da obra de Kac é muito rico.

 

— Ele fica na fronteira da pesquisa científica e da experimentação artística — avalia. — São questões como se isso é arte, se é ciência. Na verdade, podemos ser alimentados pelas duas coisas, não é uma questão de escolher, mas de refletir.

E refletir é com Kac mesmo.


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