Originalmente publicado na revista Veredas, Ano 3, N. 32, Agosto de 1998, pp. 12-15 (versão resumida com o título "Além da Tela"). Veredas é publicada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, Rio de Janeiro. Republicado na íntegra no livro Interlab : Labirintos do Pensamento Contemporâneo, Lucia Leão, ed., Editora Iluminuras, São Paulo, 2002, pp. 107-113.


Novos Rumos na Arte Interativa


Eduardo Kac

Dos gigantescos computadores da década de 40 até os computadores dekstop, laptop, e palmtop, bem como os computadores vestíveis sem fio atuais, a interação humana com essa poderosa máquina de fazer cálculos mudou. Quando nos anos 60 os computadores adquiriram a capacidade de produzir e manipular imagens, a computação gráfica se tornou proeminente tema de pesquisa entre os engenheiros. Da mesma maneira, os computadores começaram a atrair a atenção de artistas visuais por todo o mundo.

Surpreendentemente, algumas vezes, os trabalhos produzidos por engenheiros adquiriram forte impacto visual e cultural. Isso é exemplificado pela equipe japonesa chamada Grupo de Técnica Computacional, de Tóquio. Nos anos 60, eles produziram clássicos como “Running Cola is Africa” (Coca Correndo é África), uma seqüência gráfica com efeito morphing em preto-e-branco, mostrando a transformação de um corredor para uma garrafa de Coca-Cola que se transformava, a seguir, no mapa da África.

Trabalhando em paralelo à Pop Arte, ao Conceitualismo e à Arte Cinética nos anos 60, muitos artistas inovadores abandonaram o apelo táctil do domínio analógico e se aventuraram no território desconhecido da computação gráfica. Exemplos clássicos incluem os trabalhos dos norte-americanos John Whitney e Charles Csuri, do brasileiro Waldemar Cordeiro, da húngara Vera Molnar e do alemão Manfred Mohr. Muitos artistas que trabalhavam com computação na época, exploraram algoritmos que geravam múltiplas formas de arte abstrata ou Construtivista. Outros criaram imagens figurativas que adquiriam carga poetica através de procedimentos gráficos específicos (por exemplo, warping, morphing, zooming). A obra de Cordeiro é particularmente distinta nesse contexto porque o artista, vivendo na pior fase da ditadura militar brasileira, produziu imagens digitais ricas em conteúdos pessoais, emotivos ou sutilmente políticos.

A computação gráfica na arte continuou a florescer nos anos 70 e 80, e à medida que novos algoritmos iam sendo desenvolvidos, as imagens digitais começavam a adquirir cores, ricos sombreados e qualidades fotográficas. Os computadores foram pouco a pouco introduzidos nas instalações artísticas interativas, o que é exemplificado por históricas exibições como a “Software”, com curadoria de Jack Burnham em 1970 para o Jewish Museum em Nova Iorque. A computação gráfica adquiriu proeminencia em vídeos e filmes na década de 80, e até mesmo os comerciais de televisão começaram a apresentar animações digitais com regularidade. O lançamento do computador Macintosh em 1984 e a subseqüente indústria de programas gráficos tornaram acessível a um maior número de artistas a criação de imagens por computador. Por conseguinte, a criação de imagens digitais apresentou novos desafios a uma nova geração de artistas, que desfrutaram de uma liberdade criativa sem precedentes. Na década de 90, quando a nova fronteira da computação gráfica se tornou uma prática artística estabelecida e madura, e uma indústria estável, artistas experimentais começaram a introduzir a imagem digital em novos domínios da imaginação e da experiência. As obras discutidas a seguir revelam alguns dos trabalhos mais instigantes nas áreas da realidade virtual, performance interativa, avatares, telepresença e vida artificial.

A Imagem como espaço

A partir do final dos anos 80, o termo realidade virtual começa a ser amplamente usado nas publicações especializadas e nas revistas populares, em geral empregado para significar conceitos diferentes, servindo a propósitos diferentes. Quando foi pioneiramente desenvolvida por Ivan Sutherland nos idos da década de 60, a tecnologia da realidade virtual tinha por objetivo possibilitar a visualização científica de dados tridimensionais em tempo real, através do uso de um estereoscópio eletrônico (head-mounted display). Visto que a tecnologia se tornou gradativamente menos onerosa, o seu uso se estendeu para além das pesquisas laboratoriais, tendo milhares de aplicações, como na educação, no treinamento militar, na medicina, e nos jogos. Fiel às suas origens, o conceito se refere ao espaço visual no qual o observador pode navegar, em três dimensões e em tempo real. Se se observa o espaço por meio de um dispositivo estereoscópico, tem-se a sensação de estar imerso no espaço. Para ter uma experiência completa, é preciso que o computador tenha potência suficiente para calcular qualquer mudança sutil do ponto de vista do participante em tempo real.

Em 1995, a artista canadense Char Davies, trabalhando com designers e programadores, criou “Osmose”, uma obra imersiva de realidade virtual que convidava os observadores a se mover por infinitos mundos sintéticos. Nessa obra, Davies apresentou uma nova interface. Na forma de um colete, essa interface possibilitava ao “imersante” (termo de Davis para a pessoa imersa no mundo virtual) locomover-se, flutuando no mundo virtual, em tempo real, através da respiração e do equilíbrio. Dessa maneira, os observadores podiam inalar para subir e exalar para descer, bem como mover-se para frente e para trás no espaço virtual, inclinando-se da mesma maneira no mundo físico. Eles navegavam num mundo complexo feito de formas naturais, como árvores, e de elementos sintéticos, como grades cartesianas numa estrutura de arame em três dimensões, repletas de substâncias diáfanas.

“A instalação pública de Osmose”, explicou Davies, “incluía uma grande projeção estereoscópica em vídeo e áudio, de imagens e sons interativos, transmitidos em tempo real do ponto de vista do “imersante”. Tal projeção permitiu aos membros do público, munidos de óculos polarizadores, testemunhar cada jornada imersiva, acompanhando o processo. Embora a imersão ocorresse numa área privada, uma tela translúcida do tamanho da tela do vídeo possibilitava ao público observar os gestos corporais do imersante como uma poética silhueta de sombra.”

Sua obra mais recente, chamada “Éphémère” (efêmero em francês), também foi criada com uma equipe de designers e programadores e foi inaugurada em 1998 na National Gallery of Canada em Ottawa. Enquanto em “Osmose” o imersante podia mover-se por clareiras no meio de uma floresta de objetos estáticos, em “Éphémère” cada objeto está sempre em fluido movimento. Organizada em três níveis, essa nova obra faz uso de metáforas orgânicas e naturais, só que dessa vez se sugere uma analogia entre a natureza e o corpo humano. Como em “Osmose”, “Éphémère” usa o colete como interface, propulsionando, pela respiração e pelo equilíbrio, o observador no espaço. A obra faz uso criativo de sons distribuídos espacialmente em três dimensões, e só pode ser completamente vivenciada como realidade virtual por meio de capacetes. Como os observadores tentam aproveitar ao máximo os seus 15 minutos (o limite de tempo é necessário para criar equilíbrio entre intensidade da experiência e acesso egalitário entre membros do público), a sua noção de tempo pode parecer deformada. A imagem digital se torna um espaço navegável, e imersantes podem então sentir-se perdidos, `a deriva, explorando novos mundos.

A Imagem como Interface para o Corpo

Com a intenção de produzir uma visão mais distópica da realidade virtual, o artista Marcel.li Antunez Roca, de Barcelona, criou uma performance interativa a um só tempo delirante e assustadora. Chamada “Epizoo”, foi primeiramente apresentada no México em 1994 e desde então foi vista em mais de 55 cidades. A obra foi vista no Rio de janeiro no Festival de Artes Cênicas do Rio, em outubro de 1997. Eu a vi num pequeno teatro em Helsinque em 1996, sentado no palco num círculo de cerca de 50 pessoas. Como o público esperava a entrada do artista, comecei a observar o aparato posicionado na frente do palco: uma espécie de exosqueleto metálico, uma pequena câmara presa numa luva, alto-falantes, e uma ampla tela de projeção elevada acima da pequena área de ação designada ao performer. Um computador também fazia parte do conjunto, mas se encontrava fora do círculo formado pela platéia.

Marcel.li entrou, solenemente, no palco, com um robe. Posicionou-se na frente, no centro da área designada, e o tirou. Com a ajuda de um assistente, vestiu o exosqueleto, criando no palco a imagem de um cyborg, mistura de homem e máquina. No aparato havia componentes de metal que foram postos em várias partes do corpo do artista, como por exemplo no peito, nos ouvidos, na boca, no nariz e nas nádegas. No alto da cabeça, um grande bico de Bunsen sugeria que a chama também faria parte do show. A grande quantidade de tubos plásticos (necessários para o funcionamento do exosqueleto pneumático), que circundavam o artista, sugeriam que seus movimentos seriam prejudicados.
Assim que a música começou, um dos assistentes de Marcel.li sentou-se ao computador e começou a clicar em imagens, que dançavam na ampla tela visível acima da cabeça do artista. Quando o assistente clicava nas imagens, percebíamos que as articulações metálicas das partes do exosqueleto também começavam a se mexer, e que os sons dos cliques eram muito acentuados. Os componentes metálicos mexiam as partes escolhidas do corpo de forma engraçada e ao mesmo tempo assustadora. À medida que a pessoa ao computador ativava o corpo do artista, movendo suas partes numa coreografia peculiar, também ficou claro que a mobilidade limitada do artista era igualmente significativa, evocando os perigos das tecnologias de controle. Seu corpo estava sob controle alheio.

As imagens digitais vistas na tela, mescla de fotografias e animações que em geral incluíam a própria imagem do artista, funcionavam perfeitamente como uma interface para o seu corpo. Ao mesmo tempo bem-humoradas em seu tratamento e terríveis no conteúdo, tais imagens retratavam cenas de tortura e de violência, transformando as partes do corpo em elementos combinatórios e disponíveis. O artista se virava regularmente para revelar todos os ângulos de vista possíveis. Com a luva-câmara (câmara presa à luva), ele acrescentou pontos de visão adicionais, levantando e balançando a mão. A edição em tempo real possibilitou ao público ver a combinação entre a interface digital e o vídeo ao vivo.

Conforme o corpo do artista ia sendo manipulado pela interface, o público via sua boca e nariz serem arreganhados, seus ouvidos sendo dobrados para frente e para trás, o peito e as nádegas sendo puxadas para cima e para baixo. No meio da performance, o público foi convidado a controlar a interface multimídia e a assumir o controle do corpo de Marcel.li. Muitos fizeram isso, e o espetáculo mostrando a fria e desapegada manipulação de carne humana suada através de uma interface digital limpa e seca continuou. A performance toda durou cerca de 30 minutos. Culminou com uma ampla chama projetada verticalmente a partir do capacete do artista, o que possibilitou a formação de uma crítica e conclusiva visão da interface homem-máquina.

A Imagem como Avatar

Enquanto o corpo em questão em “Epizoo” é feito de carne e osso, os corpos virtuais em “Bodies© INCorporated” são feitos de pixels e wireframes. “Bodies© INCorporated” é uma obra criada para a web da artista californiana Victoria Vesna, desenvolvida em colaboração com artistas, músicos, empresas e programadores. A premissa básica do site, que foi posto on-line pela primeira vez em 1996, é que os espectadores da Web fiquem ativos numa estrutura corporativa simulada, e à medida que vão conseguindo agir, podem encomendar e escolher corpos digitais.

Explorando as variáveis da interação na Net, Victoria vê Bodies© INCorporated como uma investigação na área da psicologia social e dinâmica de grupo num contexto corporativo. Depois de anunciar a criação do site e a possibilidade de corpos digitais serem criados por encomenda, Victoria se viu sobrecarregada de respostas. Chegavam pedidos para os gêneros masculino e feminino, hermafrodita, com preferências sexuais do heterossexual ao transexual, do homossexual ao bissexual e ao assexual. A maior parte pedia corpos que representassem alteregos, seguidos dos parceiros sexuais desejados e, em menor número, namorados. Para desviar a atenção de um contexto exclusivamente sexual, eram adicionados aos corpos texturas para dar valor simbólico à pele digital. Enquanto a maioria das solicitações era por corpos sem nenhuma textura, muitos faziam sua escolha a partir de menus que incluíam borracha preta, plástico azul, bronze, chocolate, barro, nuvens, concreto, vidro, lava, chumbo e água.

“Inicialmente, o participante é convidado a construir um corpo virtual constituído de partes, tecidos e sons pré-definidos, e a ser sócio da ampla comunidade dos possuidores-do-corpo,” explica Victoria. “Os principais elementos do site on-line são três ambientes digitais (subsidiários do Bodies© INCorporated), onde ocorrem diferentes setores de atividades: LIMBO© INCorporated, uma zona cinzenta, bem indescritível, onde as informações sobre corpos inertes que foram deixados – abandonados ou negligenciados pelos seus possuidores – é acessada; NECROPOLIS© INCorporated, uma atmosfera ricamente tecida, barroca, onde os possuidores podem tanto olhar quanto escolher como desejam que seus corpos morram; e SHOWPLACE!!!© INCorporate, onde os membros podem participar de debates, ver ou atuar nos corpos da semana, apostar nas ações dos mortos, ou entrar em sessões de chat que já estão “mortas” ou que ainda estão “vivas”.

A criação de corpos digitais, que podem ser usados para representar um indivíduo, pode soar como domínio exclusivo da ficção científica, mas na verdade é um negócio real, em expansão. Bons exemplos são empresas como a Viewpoint Data Labs, que vende modelos de corpos tridimensionais e que patrocina o projeto de Victoria, bem como a Cyberware, pioneira no mercado de imagens tridimensionais e detalhadas de pessoas e objetos. A tecnologia da Cyberware, que inclui um scanner do corpo todo, foi usada para fazer filmes populares como Jornada nas Estrelas IV, O Segredo do Abismo, Robocop II, A Hora do Pesadelo, Exterminador do Futuro II, The Doors, Neuromancer, Batman II e O Parque dos Dinossauros. Com a realização de Toy Story em 1995, o primeiro filme completamente animado por computador, tornou-se concebível que uma jovem atriz cujo corpo é escaneado hoje possa estrelar um filme até muito tempo depois da sua morte. O tópico já adquiriu tamanho apelo popular que chegou a chamar a atenção até mesmo do cartunista Gary Trudeau, que em junho de 1998 retratou nas suas célebres tiras Doonesbury um diálogo entre uma atriz e seu agente, o qual lhe explicava o “elenco virtual”. Depois de escanear o corpo todo da atriz, o agente lhe prometeu “fazer vídeogames das cenas dos avatares – aqueles seus papéis de guerreira que todo mundo conhece... Não só isso, visto que seus arquivos físicos serão criados durante a sua tenra idade, você vai lucrar muito com os direitos autorais anos depois de perder a guerra contra a celulite!” Apesar do sarcasmo no comentário de Trudeau, Victoria Vesna sabe que uma cultura obcecada pela boa forma e pelos corpos esculpidos encontra uma exata reflexão de si mesma nas incorporações digitais isoladas e calculadas, fornecidas pelo site. Espectadores costumam ficar emocionalmente apegados a seus avatares, o que levanta novos questionamentos sobre a identidade, os corpos virtuais, e a interação social no ciberespaço.

A Imagem como Ponte

Os avatares formam representações de discretas entidades na Web. No entanto também é possível usar a Internet e outras redes telemáticas para criar um vínculo direto com um espaço físico real. O artista e cientista californiano Ken Goldberg é um dos poucos a explorar consistentemente as possibilidades estéticas originais da arte da telepresença (a combinação das telecomunicações com a ação remota). Alguns de seus trabalhos anteriores, baseados na telepresença na Web, incluem o “Mercury Project” (1994) e o “Telegarden”(1995). O primeiro apresentava aos espectadores objetos enterrados na areia. Esses objetos eram apresentados como arqueologicamente significativos dentro de um contexto narrativo fictício. O espectador podia controlar um braço robótico industrial para ativar um jato de ar e revelar os artefatos enterrados, bem como recuperar imagens atualizadas, para ver os resultados de sua ação. O segundo era um pequeno jardim com um braço robótico industrial no centro. O braço era controlado por meio da Web e permitia que participantes remotos plantassem sementes e as regassem. Os espectadores também podiam ver reproduções vivas do jardim.

Em ambos os casos, a imagem digital era um componente importante do trabalho e desempenhava uma função específica: criava uma ponte visual entre os espectadores na Web e o espaço físico real onde ficava a aparelhagem. Com “ShadowServer” (1997), além de preservar a condição de ponte da imagem digital, Goldberg lhe deu novo papel. Nesta obra, em vez de observar uma imagem representando uma ação, ao participante da Web é dada a oportunidade de criar, por si próprio, a imagem. Em outras palavras, a lacuna entre ação e imagem diminuiu, porque a ação é, ela própria, a remota criação da representação.

Goldberg descreve o seu trabalho: “O aparato é acondicionado numa caixa à prova de luz que contém objetos físicos, e alguns se movem dentro do aparelho. Os observadores podem interagir com esses objetos por meio de botões. Podem selecionar qualquer combinação dos cinco botões e então clicar no botão “Cast a Shadow” (Projete uma Sombra), que ativa uma combinação de dispositivos de luz e que retorna um instantâneo da sombra resultante. Cada combinação de botões produz diferentes condições de iluminação. Algumas combinações casuais fornecerão pistas que levam ao misterioso Sexto botão. O Sexto botão ilumina segredos escondidos numa alcova do aparelho.”

As imagens criadas pelo observador através da interface ShadowServer evocam, invariavelmente, os misteriosos e belos fotogramas de Moholy-Nagy, e também os fotogramas da Caixa de Luz de Nathan Lerner. Membro da Bauhaus, a histórica escola de arte alemã que influenciou muitíssimo a arte e a projeção do século vinte, Moholy-Nagy cunhou o termo fotograma para designar suas fotografias sem câmara, produzidas pelo contato direto dos objetos com o papel fotográfico. Entre os seus primeiros experimentos com o fotograma em 1922 e a sua prematura morte em 1946, o mestre Construtivista produziu cerca de 500 fotogramas que demonstraram efetivamente sua crença de que a luz era, por si só, um importante novo meio de criação artística. Fugindo da ascensão do Fascismo na Europa nos anos 30, Moholy-Nagy imigrou para os Estados Unidos para fundar a Nova Bauhaus em Chicago. Entre os seus alunos estava o fotógrafo norte-americano Nathan Lerner, que em 1938 inventou a Caixa de Luz. Tratava-se de uma caixa perfurada com luzes colocadas dentro e fora, cujos objetos eram suspendidos para criar primorosos fotogramas. Lerner escreveu na época: “Sinto que se eu pudesse criar um mundo virtual de trevas, podendo posteriormente desenvolvê-lo num mundo de luz ordenado, eu estaria perto da solução do problema da organização controlada da luz.” Como o experimento da caixa-de-luz adquire uma remota e automática natureza no trabalho que Goldberg desenvolve na Web, percebemos uma ressonância histórica distinta entre a aventura de modulação de luz dos fotógrafos vanguardistas e a postura democratizadora da arte na Web. A pedagogia de Maholy-Nagy estava baseada na tentativa de extrair o que ele acreditava ser a criatividade inerente a todos. Como observadores anônimos criam incontáveis fotogramas digitais na Web, o ShadowServer é um exemplo de que essa visão hoje se manifesta digitalmente. Imaterial como a luz, a rede se torna tanto veículo para a arte quanto para a criatividade dos participantes.

A Imagem como Vida

O desejo de trabalhar entre os reinos real e digital não é exclusividade da arte da telepresença. Na instalação interativa intitulada “A-Volve”, a austríaca Christa Sommerer e o francês Laurent Mignonneau criaram uma metáfora formidável da vida artificial, fundindo elementos tangíveis e intangíveis. A obra foi premiada no festival internacional de artes eletrônicas Ars Electronica, em Linz, na Áustria, em 1994. O duo europeu, que atualmente reside no Japão, permitiu, em “A-Volve”, que as imagens digitais geradas em tempo real por observadores anônimos desenvolvessem comportamentos semelhantes aos da vida real e interagissem numa piscina de 15 cm de profundidade, medindo 180 x 135 cm. Observadores, acostumados com a animação tradicional feita por computador, descobriram que esses organismos animados não eram previsíveis em seus movimentos e que adquiriram padrões comportamentais idiossincráticos nesse meio-ambiente interativo em tempo real.

Aproximando-se da instalação, os observadores, além de ver a piscina de água, viram um pedestal com uma tela digital embutida. Solicitados a desenhar livremente no monitor com os dedos, os observadores improvisaram e esboçaram tanto o perfil quanto a vista superior de um organismo artificial. Alguns instantes depois eles viram essa criatura emergir das profundezas da piscina e começar a nadar com o seu próprio e exclusivo padrão comportamental de movimento. A criatura também interagiu de forma complexa com outros organismos artificiais, que já estavam na piscina,, seguindo regras de sobrevivência que incluíam padrões acasaladores e predatórios. Os espectadores puderam olhar dentro da piscina e observar as criaturas “na água”, porque uma tela projetora formava o chão da piscina e as imagens em tempo real eram projetadas para cima nesta tela. A sensação foi ainda mais realçada pelo fato de que o meio-ambiente digital, em que as criaturas viviam, foi criado a partir de uma perspectiva com um ponto de vista único e com um fundo escuro e difuso, o que dava a impressão visual de uma lagoa muito mais funda.

O título da obra evoca, claramente, a idéia de evolução artificial, porque em vez da esperada letra E de evolução, encontramos o A que também prefixa a disciplina científica emergente da Alife, ou vida artificial. Uma das idéias-chaves desse novo campo científico é a de que o que conhecemos sobre a vida se baseia, obviamente, na vida na Terra e que a vida pode, concebivelmente, tomar outras incontáveis formas, muitas das quais podemos não estar prontos para reconhecer devido às nossas expectativas terrestres pré-concebidas. O que conhecemos é a vida baseada no carbono, e mesmo assim ficamos sempre surpresos com as novas descobertas que parecem estilhaçar as pressuposições confortáveis que até agora serviram de pilares para as ciências biológicas. Um bom exemplo é a descoberta recente de prósperas colônias de microorganismos que vivem em meios-ambientes inóspitos, como por exemplo dentro de rochas e no fundo do mar, onde as temperaturas e a toxicidade são incrivelmente altas e o oxigênio carente. Para explorar alternativas para o conceito de vida como nós o entendemos, cientistas rotineiramente criam algoritmos que emulam padrões de vida básicos, como nascimento, crescimento, reprodução e morte, e permite que os organismos digitais interajam entre si. Isso com freqüência resulta em comportamentos emergentes imprevisíveis que se assemelham mais estreitamente a complexas interações típicas de criaturas cujas vidas têm por base o carbono. Podem ocorrer surpresas, e além disso, por conseguinte, pesquisas no âmbito da biologia artificial.

“A-Volve” extrai esse conceito do domínio afastado dos laboratórios científicos, e lhe oferece uma expressão tangível. A obra permite que os espectadores se tornem participantes quando assumem a responsabilidade pela criação desses organismos e quando interagem com eles, movendo as mãos na água. Se os espectadores “pegam” uma das criaturas, eles podem trazê-la para mais perto da outra e formar um par. Isso resulta no "nascimento" de novas criaturas que logo depois podem ser vistas a debater-se na água. Essa situação permite aos espectadores interferir ainda mais no curso evolucionário desse microcosmo digital e descobrir como as fronteiras entre o real e o artificial podem ser tênues.

Os trabalhos acima examinados revelam novos rumos para a arte interativa. Expandindo o papel da imagem individual e dando maior ênfase à qualidade dinâmica da experiência, essas obras desafiam a noção de que a obra de arte tem de estar centrada no “autor” e que tem de ser materialmente estável, como é comum na pintura e na escultura. Essencialmente imaterial, com vários graus de complexidade emotiva, intelectual e técnica, essas obras de arte eletrônicas são vistas com regularidade em mostras internacionais, mas quase nunca nos mesmos espaços e pelo mesmo público que forma o mercado de arte. Esses e outros artistas, que estão desenvolvendo uma nova arte baseada nos novos meios contemporâneos, estão encontrando espaços alternativos para apresentar a sua obra. Em algumas circunstâncias, como no caso de Victoria Vesna e Ken Goldberg, a Internet é o espaço digital “natural” para mostrar a obra, que pode ao mesmo tempo alcançar um público global imenso. Char Davies e Sommerer & Mignoneu costumam mostrar o seu trabalho em museus e Marcel.li Antunez Roca mostrou a sua performance em mais de 50 cidades em 17 países. A arte eletrônica é vista com freqüência em muitos espaços diferentes, em vários países, e em múltiplas formas. Museus já começam a mostrar a arte eletrônica com mais frequência. Esse interesse é a clara indicação de que a arte eletrônica tem muito a nos dizer sobre a experiência contemporânea, sobre os limites e possibilidades da arte, e sobre nós mesmos.


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