Originalmente publicado no jornal O GLOBO, 7 Maio 2001.


A arte e a ciência de confundir ciência e arte

Toni Marques
Correspondente em NOVA YORK

Assim como um milionário americano provou que os astronautas profissionais não são mais os donos do espaço, há quase duas décadas um artista brasileiro mostra que a ciência é importante demais para permanecer monopólio dos cientistas - e talvez a vida seja importante demais para ficar nas mãos de Deus ou de seus rivais. Ela pertence a todos, inclusive a Eduardo Kac, cuja exposição "Genesis", aberta esta semana em Chicago, depois de montada em Nova York e em São Paulo, no ano passado, mostra uma bactéria na qual foi feito um implante de DNA sintético - DNA este concebido a partir de uma sentença bíblica - manipulável pelo espectador.

- Penso na comunicação como um processo vital, literalmente - disse ele, por telefone, de sua casa em Chicago. - Não há vida sem comunicação.

Kac, por incrível que pareça, é dos poucos artistas conceituais, em todo o mundo, a trabalhar com, bem, vida. Vida no sentido biotecnológico, mas também no artístico, no histórico, no metafísico. Seus colaboradores são PhDs, médicos, engenheiros. A sentença escolhida para virar DNA é justamente do "Livro da criação" do Velho Testamento - noutras palavras, ele fez um gene do "Gênesis": "Deixe o homem ter domínio sobre o peixe do mar e sobre a ave do ar e sobre toda coisa viva que se move pela terra". Primeiramente, ele a traduziu para o Código Morse; em seguida, converteu os sinais em representações de DNA, segundo modelo estabelecido pelo próprio artista. O DNA foi criado em laboratório pelos especialistas com quem ele trabalha, e finalmente implantado na bactéria. A imagem da bactéria transgênica é então projetada na galeria, e pela internet o observador aciona luz ultravioleta que modifica biologicamente o minúsculo cobaia artístico.

"Isto modificou a sentença bíblica na bactéria", afirma ele, na descrição da obra - seus trabalhos parecem requerer um manual. "A habilidade de mudar a sentença é um gesto simbólico: significa que não aceitamos seu significado na forma pela qual o herdamos, e novos significados emergem enquanto procuramos modificá-lo".

- O mundo tecnológico afeta todo mundo, e todo mundo sabe disso. O que é menos claro é até que nível as pessoas estão interessadas em refletir sobre isso, porque pode ser desconfortável perceber como a tecnologia de certo modo dita certos padrões de sensibilidade ou de comportamento. Você perde uma noção de livre arbítrio e passa a perceber que está preso nessa rede de interações sociais que são parcialmente reguladas por dispositivos tecnológicos. A função do artista não é repetir o que a gente já sabe. Não é só espelhar a sociedade. Walter Benjamin dizia que o artista de vanguarda cria no presente uma demanda que será comum no futuro.

Trata-se de uma nova exploração pelo que chama de "arte transgênica" - há menos de dez pessoas trabalhando com ela no mundo. A primeira foi "Alba", o coelho fluorescente que acendeu um debate sobre o uso de animais em obras de arte - e um debate sobre a manipulação genética como mensagem artística. A revista "New Scientist" o entrevistou em janeiro deste ano para fazer a pergunta: isso é arte? Ou melhor: seria Dolly, a ovelha clonada, arte? Ele respondeu perguntando se se pode considerar ciência um quadro de Kandinsky, mas disse que Dolly não é arte porque não concebida artisticamente, assim como o quadro de Kandinsky não é ciência porque não foi cientificamente que o pintor abordou a obra.

Mas, no caso de Alba, a ciência quer falar mais alto que a arte. O ex-diretor do Instituto Nacional para Pesquisa Agronômica, em cujo laboratório foi concebido o coelho que se torna verde sob uma dada iluminação, não permitiu que Alba permanecesse com seu idealizador. Ele alegou que Alba não teria condições apropriadas para ser apresentada ao público na companhia de Kac, ao que o artista afirma que as supostas condições nunca foram apresentadas pelo instituto. "Ele nunca nos permitiu tentar criá-las", disse ele à "New Scientist". "Como artista, estou usando os processos da ciência para nos permitir abrir o discurso na esfera social".

Radicado nos Estados Unidos há 12 anos, onde é professor assistente do Departamento de Arte e Tecnologia da Escola do Instituto de Arte de Chicago, este ex-redator de publicidade e ex-jornalista tornou-se conhecido no Brasil em meados dos anos 80, graças aos poemas holográficos, contados entre os pioneiros do meio, e hoje adquiridos por colecionadores internacionais, e ao que chama de "arte de telepresença", iniciada pela utilização de um robô em 1986, na exposição "Brasil High Tech" promovida no Centro Empresarial Rio, cuja voz era de um ser humano, transmitida em tempo real.

Ele saiu das areias de Ipanema para laboratórios americanos. Antes de lidar com tecnologia, Kac apresentou-se no Rio de Janeiro, onde nasceu, como integrante da Poesia Pornô, grupo de poesia muito atuante na Zona Sul da era das performances, no início da década de 80. Na década passada, o evento "Time capsule" ganhou o noticiário nacional ao envolver um implante de chip no tornozelo do artista. O evento havia sido recusado pelo instituto cultural do banco Itaú devido ao risco que supostamente sua vida correria durante a realização. "Time capsule" foi então realizado a convite do Centro Cultural Casa das Rosas, em São Paulo, em novembro de 1997.

Três meses antes, apresentara "A positivo" em Chicago. Sangue retirado de seu braço acionava um robô, o qual lhe fornecia nutrientes de forma também intravenosa. O sangue do artista acendia uma faísca no coração de vidro do robô.

- Uma metáfora da vida possível da máquina por intermédio dessa simbiose, dessa coisa dialógica. Porque eu penso muito também a comunicação não só como troca de palavras, ou símbolos ou gestos, mas numa comunicação não-semiótica, que ocorre por meio de uma passagem física, e não da existência de um signo que é interpretado - diz ele.

Seu trabalho é equacionado no limite da comunicação. Por isto, tem de ter um aspecto didático, do contrário permanecerá um enigma, como o mistério da vida que o conhecimento humano parece prestes a decifrar. Ou não.


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