Originalmente publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,Caderno B, 29.11.1988.


Um unicórnio na matemática

Reynaldo Roels Jr.

A obra recebeu o título Quando?,e sozinha é todaa exposição Holofractal de Eduardo Kac e Ormeo Botelho, naGaleria de Fotografia da Funarte, aberta até a próxima quinta-feira.São dois paralelogramos que giram continuamente, um em sentido horário(um holograma clrcular), o outro no sentldo anti-horário (uma imagemde computação gráfica projetada em telão).A rotação, ao contrário do que enuncia a geometrlaquando sóbrla, não tem 360°, mas 720°: os paralelogramostem assim, não seis faces, mas nove, também em total desacordocom os enunciados da geometria antes do porre (ou paralelogramos tem seislados, por definição, ou não são). Sobre quatrodas faces, flutuam cinco blocos de palavras: A luz/Ilude/A lente/Lenta/Mente,um poema lido em ordem normal no holograma, e em ordem inversa no vídeo.A todos estes movimentos soma-se o do espectro cromático do holograma,que se modifica de acordo com a posicão do espectador.

Kac já demonstrou diversas vezes a sua inteligência emlidar com linguagens que empregam a alta tecnologla, a arte high-tech.Ao contrário de outros muitos artistas, que fazem do meio um fim,Kac tem a consciêncla de que os instrumentos servem para dizer algo,e não para serem exibidos como em um circo e cujo conteúdose resume à acrobacia tecnológica. Quando? foi o resultadode dois anos de trabalho com Ormeo e uniu a holografia ao computador atravésda geometria fractal ("um novo ramo da matemática desenvolvidonos Estados Unidos pelo polonês Benoit Mandelbrot", como explicaele).

Quando? apresenta ainda uma particularidade: o holograma nãofoi obtido diretamente por nenhum meio mecânico (fotográfico),e sim através de um programa de computador (normalmente, o hologramaparte do registro da imagem de algum objeto real). Se se tratasse de umparalelogramo concreto, Quando? seria Inviável, práticae teoricamente. Se confrontado com a intenção poéticados autores, este lado talvez pareça o mais pirotécnico daobra, logo, o menos importante.

Mas a aparência logo se desfaz, quando ao lado de obras de outrosartistas que trabalham em um limite próximo: pensar a impossibilidade.Os labirintos de Jorge Luis Borges são um exemplo; as xipófagascapilares de Tunga são outro. Absurdos lógicos que são,podem, contudo, ser pensados e demonstrados possíveis, dentro decampos específicos. (Há o caso do unicórnio e outrosmitos: mas sua inexistêncla é apenas obra do acaso, e nãoresultante de um absurdo lógico.)

Muita da força da arte vem exatamente desta capacidade, a deajudar a romper com enunciados de verdade logicamente indiscutível,mas que revelam ser de natureza apenas paradigmática. As relaçõesentre o cubismo e a topologia são conhecidas, como tambéma pintura do Renascimento e a perspectlva, que matematizaram o real visívele ajudaram a derrubar a velha concepção teocêntricada Idade Médla. Não se trata de afirmar que as obras citadasterão o mesmo efeito avassalador sobre as estruturas de saber contemporâneas.Mas são cunhas que se colocam aos poucos, e cujo resultado serásentido, cedo ou tarde.


Back to Kac Web