Revista Oi 16 - Evoluções e Mutações, 2005


Daniela Canedo

Manipulação genética, o homem já faz há milênios, mesmo sem saber. Ao escolher para o cultivo alimentos com as mutações mais interessantes – frutas mais coloridas e gordinhas, por exemplo –, nossos ancestrais já driblavam a seleção natural. Se não fosse plantada e protegida pelos seres humanos, a fruta vistosa poderia ser extinta por passarinhos, enquanto as sem-graça sobreviveriam. Para o artista plástico Eduardo Kac, 42 anos, agora há forças muito mais poderosas alterando a cartilha da evolução das espécies em escala global. “As forças principais da evolução hoje são Wall Street (bolsa de valores de Nova York) e FedEx (Federal Express, serviço internacional de entregas). A primeira define aquilo que vai viver e a segunda o distribui”, diz Kac, que fez da engenharia genética a face mais conhecida, e polêmica, do seu trabalho.

Para explicar sua irônica teoria, Kac cita o McDonald’s. “A empresa decidiu vender maçãs, mas só de dois tipos. Se só estas dão dinheiro, por que o produtor vai plantar outras?”, provoca, sugerindo que, com a penetração global da lanchonete, isso altera nosso ecossistema. “Num mundo de monoculturas ditadas pelas bolsas de valores, os artistas têm que inventar novas formas de vida, como forma de resistência e para aumentar a biodiversidade, o que é muito doido.”

Bota doido nisso. Pioneiro na arte digital e na transgênica – que usa engenharia genética –, Kac também evolui em ritmo próprio. Em 1983, lançou o livro Escracho, que hoje integra a coleção do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), e criou a holopoesia, linguagem poética premiada no exterior. Em 86, inventou a telepresença – que consiste, diz, em conectar fisicamente um espaço a outro pela internet – e, em 99, criou sua primeira instalação transgênica. Hoje, professor em Chicago, expõe seus trabalhos e dá palestras no mundo inteiro, do Brasil à Coréia do Sul.

BANDEIRA VERDE Kac usa a biotecnologia para criar seres mutantes e integrá-los ao seu currículo, em que já brilham bactérias, plantas e até o coelho verde, símbolo de sua arte e ícone da bandeira hasteada em frente à sua casa, em Chicago. O artista emprega também a informática e a robótica, mas não quer saber de frieza tecnológica em seu trabalho. “Espero que o público tenha experiências ricas do ponto de vista emocional e intelectual”, diz.

São mesmo muitas emoções. De suas obras transgênicas – Gênesis (1999), Coelho GFP (2000), O Oitavo Dia (2001) e Lance 36 (2004) –, a segunda foi a que mais gerou confusão e protestos. Tanto barulho porque, em fevereiro de 2000, num laboratório francês, Kac deu à luz um coelho – ou melhor, deu luz a um coelho albino ao injetar, em seu DNA, a proteína GFP (green fluorescent protein), encontrada na água-viva Aequorea victoria. Sob a incidência de luz azul, o pêlo da fêmea Alba passa do branco ao verde fluorescente.

Foi a primeira vez que um artista criou um sujeito, em vez de apenas representá-lo. “Inventei um ser vivo que a natureza não poderia produzir”, diz Kac, que não tem formação científica. Graduado em Comunicação Social na PUC-Rio, com mestrado em Belas Artes pela The School of the Art Institute of Chicago – onde hoje dá aulas – e doutorado em arte interativa pela University of Wales, na Grã-Bretanha, o carioca conta com especialistas para dar vida às suas idéias. “A grande maioria dos artistas trabalha com profissionais especializados em determinadas áreas”. explica.

Kac vende seus trabalhos para museus e coleções particulares – uma de suas instalações pode custar até 50 mil dólares. No caso do coelho, no entanto, a idéia era levá-lo para casa, como bicho de estimação. Mas o plano foi frustrado pelo diretor do laboratório. “Ele censurou meu trabalho no último minuto e não deixou Alba sair de lá. Não tive mais notícias. Coelhos vivem, em média, de oito a doze anos, mas não numa jaula”, lamenta o artista, que liderou a campanha Free Alba! na Europa e nos EUA, na esperança de libertar o animal. Reunida na exposição Rabbit Remix, a documentação deste movimento viajou o mundo. No Brasil, aterrissou em 2004 na galeria Laura Marsiaj Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, e também na 26a Bienal de São Paulo.

Na época, havia cartazes do bichinho verde por todo canto. “A intervenção no espaço público também era parte da exposição”, explica o artista, cuja cria provocou discussões éticas e filosóficas. “Se Alba fosse morar comigo, seríamos uma família de três seres humanos e um coelho verde. Neste caso, em que proporção aquilo que é inusitado, quando integrado ao dia-a-dia, permaneceria inusitado?”, questiona-se Kac, que mora com a mulher e a filha. Por causa do mutante luminoso, já foi chamado de maluco. “O que ofende as pessoas não é o animal em si, mas o fato de Alba transformá-las à revelia, de arrancá-las de um espaço confortável de certezas que tinham. Isso pode gerar reações violentas”, analisa.

Mas não pense que Alba foi uma febre – ou lebre – passageira. Ela é do tipo que sai da vida, ou pelo menos de cena, para entrar na história. Literalmente. O coelho verde serviu de inspiração para os autores de dois livros: Retour définitif et durable de l’être aimé (Retorno definitivo e durável do ser amado) do francês Olivier Cadiot, e Oryx e Crake, da canadense Margaret Atwood, lançado no Brasil pela Rocco. E não foi só. Houve ainda quem lhe encomendasse animais de outras cores. “As pessoas escrevem e pedem, mas isso não faz sentido”, diz.

A memória de Alba, como se vê, sobreviveu aos protestos. E foram muitos, mas que ninguém diga que o artista não avisou. Um ano antes da criação do coelho, ele lançou Gênesis, seu primeiro trabalho transgênico, mostrando que seus projetos tinham a bênção de Deus. É que Kac apropriou-se do texto bíblico “Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra”, em inglês, para alterar o DNA de bactérias. “A frase é quase uma incumbência divina”, acredita.

O trecho do Gênesis, primeiro livro da Bíblia, foi traduzido para código Morse. A partir de uma fórmula elaborada por Kac, os sinais foram convertidos numa seqüência que deu origem ao chamado “gene artista”, introduzido nas bactérias da obra. Exposta em mais de 30 museus e galerias, a pioneira Gênesis é uma instalação interativa. Por meio da internet, o visitante aciona a emissão de raios ultravioletas sobre as bactérias originalmente amarelas, que, sob a ação desta luz, sofrem mutações, tornam-se azuis e se reproduzem, podendo gerar filhotes verdes.

Mas o trabalho é mais do que bactérias coloridas numa placa de Petri, os potinhos transparentes usados em laboratórios. “Quando as pessoas emitem raios ultravioletas sobre os seres, estão alterando o texto bíblico contido neles, desrespeitando a afirmativa original”, diz Kac, que apresenta um dilema ético neste trabalho. “A única forma de ser contra a manipulação genética e alterar o texto é causando a mutação, o que é contraditório”, explica.

Além das bactérias e de Alba, Kac fez plantas, peixes, amebas e ratos tão fluorescentes quanto o coelho. Estão todos no sistema ecológico artificial de O Oitavo Dia, seu terceiro trabalho transgênico. Já sua mais recente instalação, Lance 36, concluída no ano passado, traz um arbusto geneticamente modificado num grande tabuleiro de xadrez, em que os quadrados escuros são de terra, e os claros, de areia branca. A instalação foi inspirada na vitória do computador Deep Blue sobre o campeão de xadrez russo Garry Kasparov, em 1997.

O barato da obra é que o arbusto está enraizado exatamente onde se deu o movimento decisivo na vitória da máquina sobre o homem. E a plantinha é cartesiana: recebeu um gene criado a partir da mais famosa frase do matemático francês René Descartes (1596-1650): “Cogito, ergo sum” (penso, logo existo). Kac transformou palavras em números por meio da linguagem binária (o código universal da informática) e, então, converteu os dígitos na seqüência genética introduzida no DNA do arbusto.

Carioca de Copacabana, Kac não brincava com kit de química mirim quando criança: preferia surfar na Praia do Pepino e escalar a Pedra da Gávea. Ao mesmo tempo – e eis o que o diferenciava da maioria dos surfistas com quem pegava onda – devorava livros e artes. “Curtia cinema, quadrinhos, literatura e outras formas de expressão.” Hoje, é protagonista de manobras artísticas radicais, mas com o mesmo fôlego da juventude de esportista. “Espero viver pelo menos mais três décadas. Ainda há muito pela frente”, garante. Para o futuro, aposta na arte espacial. “Viagens para fora da Terra serão mais uma opção de lazer, e as pessoas devem passar um tempo por lá”, prevê, com a certeza de um visionário. E que ainda deve viajar muito, cada vez mais longe.


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