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05/03/2010 às 16:00
Cultura

"A arte é o laboratório da liberdade"

Luísa Sandes

Formado em Comunicação Social pela PUC-Rio, o artista plástico Eduardo Kac está com uma exposição na galeria Oi Futuro, no Flamengo, até o dia 7 deste mês. Os visitantes podem ver de perto obras baseadas na bioarte e arte transgênica, nas quais seres vivos e DNA são transformados em arte por meio de manipulação em laboratório. Kac desenvolve também arte de telepresença, fundamentada na interação entre o participante e um telerrobô, e arte digital, que inclui, por exemplo, três dimensões.

Conhecido internacionalmente, o artista mudou-se para os Estados Unidos em 1989, onde obteve mestrado em artes plásticas pela School of the Art Institute of Chicago. Em entrevista ao Portal PUC-Rio Digital, Kac analisou as mudanças que afetaram o cenário artístico ao longo do tempo, a utilização da biologia e tecnologia em obras de arte e a situação da arte contemporânea no Brasil.

Portal PUC-Rio Digital: Qual o conceito estético por trás da bioarte?

Kac: De forma genérica, o que caracteriza a bioarte é o fato de que, ao contrário de outras formas de arte, ela trabalha com a vida de uma maneira literal. Não se propõe a representação ou a metáfora da vida, estamos falando da manipulação da vida biologicamente nos seus aspectos mais fundamentais. Ou seja, da genética, do crescimento das células, da manipulação do metabolismo, enfim, do transformar a vida biológica em um meio para criação da arte. A partir dessa definição geral teria que se entrar na particularidade de cada obra.

P: Qual o limite entre a vida cotidiana e a arte contemporânea?

K: Essa é uma pergunta complexa, pois o contexto em que a arte é produzida e circula se altera ao longo do tempo. No renascimento, a arte estava muito ligada às encomendas da corte e da Igreja. Assim foi até o momento da ascensão da burguesia e da fotografia, que força uma redefinição do estatuto da arte, até as modalidades extremamente contemporâneas nas quais a internet, por exemplo, tem um papel de circulação praticamente imediato e concomitante à própria produção. Numa escala global, nota-se nesses saltos da história uma redefinição constante nos modos de produção, circulação e recepção da obra. Poderíamos dizer que por causa disso, hoje a arte pode chegar com mais rapidez e proximidade. Mas o fato de que exista um sistema tecnológico não quer dizer que há uma análise maior e uma apreciação maior. Porque com essas mudanças de sensibilidade que acompanham a velocidade da circulação da informação, vêm outras mudanças. Por exemplo, uma pessoa fica em média quatro segundos em frente à uma obra de arte. A média dos cortes de uma seqüência para outra de um clipe da Lady Gaga [cantora americana] também é de quatro segundos. As mudanças de tecnologia, embora tornem a informação mais acessível, afetam a sensibilidade de uma forma profunda.

P: Qual o papel da arte hoje? A arte tem um papel?

K: A arte não tem que responder a nenhuma demanda particular. É um espaço na cultura onde a liberdade é absoluta. É o laboratório da liberdade. É o lugar onde você pode exercer, sem nenhuma restrição, a liberdade total da criatividade e da experiência. Ainda com essa liberdade absoluta, você tem certos limites. Por exemplo, segundo o manifesto do surrealismo, André Breton, fundador do movimento, escreveu que o ato surrealista por excelência seria você sair à rua com uma pistola e disparar aleatoriamente nos transeuntes. Conceber o inconcebível e o propor de maneira provocatória era um ato surrealista por definição. Se o artista decidir que o assassinato é uma forma de arte, estamos todos de acordo que há um limite em relação a isso. Mas tirando esses casos extremos, você preserva e encontra na arte um lugar onde você pode imaginar e realizar hoje aquilo que um dia pareceu inconcebível, mas que com grande probabilidade fará parte da cultura no futuro.

P: De que forma a tecnologia pode acrescentar e enriquecer a arte?

K: Na verdade tudo é tecnologia, a partir do momento em que você está no campo do tecno-logos, do saber fazer, da transformação material do mundo em instrumentos, que por sua vez, permitem transformar o mundo de maneira mais eficiente. O que acontece é a inércia da cultura. Há uma acomodação que faz com que a forma tradicional de produção passe a ter algum tipo de valorização cultural superior aos modos de trabalhar da contemporaneidade. Isso é absurdo. Aplicar tinta sobre a tela é uma maneira de trabalhar, criar um robô especialmente para uma obra de telepresença é outra maneira de trabalhar. Da mesma forma, usar a biotecnologia para criar a vida é outra maneira de trabalhar. Cada artista vai empregar meios que correspondem às suas ambições poéticas pessoais. O que não pode haver é um preconceito baseado na rotina, na convenção e no hábito. O hábito é cego, tem que ser questionado e desafiado. É triste se você, de maneira acrítica, se ater ao hábito por conta da inércia, da incapacidade de reflexão e invenção de novos horizontes. É aí que a arte pode abrir novos caminhos, questionar e criar novas linguagens. A tecnologia pode ser um meio para essas novas linguagens.

P: Por meio da sua arte, você pretende levantar a questão da ética na era digital?

K: A ética tem que fazer parte da manifestação do comportamento humano, mas não existe apenas uma "ética" universal. As diferentes sociedades têm definições do que é aceitável e do que não é aceitável. O contexto no qual tais regras de uma comunidade são aplicadas tem que ser examinado. Na bioarte, eu crio o conceito da ética performativa, não no sentido de performance, mas no de que as questões éticas não são posteriores, não vêm depois da criação da obra. Ao falar em manipular uma vida que não é um objeto, você tem que respeitar e entender que você está criando uma vida que não existia, tão viva quanto você. Preciso ter uma relação de carinho e cuidado com essa vida. Esse é um comportamento ético que se impõe no momento da criação da obra, na gestação, na germinação, no nascimento, na incubação da vida que se esteja criando. Essa é uma ética performativa no sentido que ela já está trabalhando na própria concepção da obra.

P: Como você vê a situação da arte contemporânea no Brasil? Aqui ela é menos valorizada que em outros países?

K: Não sei se a arte contemporânea é pouco valorizada no Brasil. Não é que haja um público menor, ou menor interesse, mas o que acontece é que fora do Brasil você tem a seguinte dinâmica: em um país como a França, o Estado tem um compromisso muito sério com a cultura. Então não importa quem esteja no poder, o Estado não abandona as instituições de arte. Nos Estados Unidos, você tem a iniciativa privada com grande compromisso dos colecionadores em manter as instituições. No Brasil, a cultura sofre muito com as variações políticas. Talvez haja mais massa crítica fora do Brasil, as bibliotecas assinam as revistas de arte, há um número maior de pessoas envolvidas na produção e no consumo de arte contemporânea. Mas dado o número de pessoas no Brasil que se envolvem com a arte contemporânea, acho que esse envolvimento é sério, é mantido e honrado pelo público e pela imprensa.

P: O que pode ser feito para melhorar a situação da arte contemporânea no Brasil?

K: A lei de importação de obras de arte deveria mudar. Para importar obras no Brasil hoje, você paga uma taxa absurda. Isso impede a vinda delas para o Brasil. Por exemplo, se um colecionador decide que quer comprar uma obra que poderá vir para um museu brasileiro, teria que pagar cerca de 50% em cima do valor da obra. Nos Estados Unidos, você não paga taxa de importação de obra de arte. Essa é uma das mudanças que deveria ser feita para estimular a cultura. Mas há coisas boas no Brasil: a minha exposição, por exemplo, é resultado da lei de estímulo à cultura que permite que as empresas usem parte dos seus impostos para financiá-la. Tem outras coisas que são boas, mas ainda há espaço para melhoria. Há questões políticas, mas há também problemas no campo da educação. As crianças, por exemplo, aprendem sobre física contemporânea na escola, mas não sobre arte contemporânea. Elas crescem na ignorância de quem seja, por exemplo, Marcel Duchamp e Tarsila do Amaral.


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