Primeira publicação: "Rabbit Remix" (catálogo), Laura Marsiaj Arte Contemporânea, Rio de Janeiro, n.p.n. A exposição foi realizada de 19 de Setembro a 21 de Outobro, 2004.

Republicado online em Trópico, "Eduardo Kac no país das maravilhas", <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/index.shl>, Setembro 2004. (Portuguese)


Eduardo Kac no país das maravilhas

Didier Ottinger

(Tradução de Ricardo Rangel)

“O século XX foi o século da Física e da Química.
Mas está claro que o próximo século será o século da Biologia.”
Robert F. Curl, prêmio Nobel de Química em 1996


Em 1917, um artista anônimo tira do chapéu um mictório tão imaculado quanto um coelho albino e o submete intacto ao Salão dos Independentes de Nova York. O pintor George Bellows fica indignado: “não podemos expor isso”. O colecionador Walter Arensberg toma a defesa do objeto incriminado: “não podemos recusá-lo, o direito de admissão foi pago.”
Bellows: “é indecente!”
Arensberg: “uma forma sedutora foi revelada, liberada de seu valor de uso, de modo que alguém realizou um gesto estético.”
Depois de violentos debates, o mictório acabou sendo descartado do Salão.
O artista “anônimo” é um jogador de xadrez chamado Marcel Duchamp. Ele é provisoriamente “chefe do comitê de montagem” dos Independentes nova-iorquinos.
A apresentação de seu mictório (rebatizado Fonte para a ocasião) se inscreve em uma estratégia de grande fôlego. Ela pretende nada menos do que redefinir as categorias artísticas em voga. Duchamp sabe que o prestígio de uma obra, seu potencial mítico, é inversamente proporcional a seu grau de exposição. O desaparecimento (orquestrado) do mictório é uma bênção. A obra não existirá a não ser na fotografia do objeto feita logo a seguir (por Stieglitz), por sua reprodução na capa da revista The Blind Man, cujo editor é o próprio Duchamp.
O GFP Bunny [Coelha GFP] de Eduardo Kac provoca no campo da arte um terremoto comparável àquele causado pelo mictório de Marcel Duchamp. A exemplo de seu predecessor sanitário, o “prestígio” do coelho cresce na proporção de sua invisibilidade. O animal, “realizado” por um laboratório francês (o INRA de Jouy-en-Josas), nunca pôde ser exposto no espaço público para o qual foi concebido. Sua fotografia, em compensação, foi reproduzida na primeira página dos maiores jornais do mundo. Assim como o mictório, a coelha fluorescente levanta questões que conduzem a uma redefinição de nossas idéias e critérios estéticos.
Apesar de “fabricada” por um laboratório, ela resiste a se deixar aprisionar nas categorias aplicáveis aos ready-made.
Privada da fonte luminosa que provoca sua luminescência, ela se assemelha a um banal porta-garrafas ou a uma pá de neve comum. À primeira vista, ela parece corresponder à definição surrealista do ready-made. Afinal, não é ela um “objeto alçado à dignidade de obra de arte pela simples vontade do artista?”
Um exame mais minucioso do animal, levando em conta a manipulação genética a que foi sujeito, o consideraria quase um assisted ready-made (de acordo com a definição que Duchamp dá a esta segunda categoria de ready-made). Do mesmo modo que o Pente de 1916 foi expandido com uma inscrição, o genoma da coelha GFP foi enriquecido com uma seqüência genética que a distingue de seus congêneres. Somente a ausência do “déjà-là” da coelha a retira da definição estrita do ready-made.
Em uma terceira abordagem, Alba se assemelharia a With Hidden Noise [Com ruído oculto] ou a Why not sneeze, Rose Sélavy? [Por que não espirrar, Rose Sélavy?]. O primeiro desses objetos é formado por um rolo de barbante ligando duas placas de latão sobre as quais Duchamp inscreveu um texto enigmático. O segundo é feito (entre outras coisas) de pedaços de mármore, polidos até parecerem torrões de açúcar, trancados em uma gaiola de passarinho. Estes dois objetos, que já não têm mais nada de ready-made, que exigiram um verdadeiro trabalho de manufatura, são ready-made apenas no nome. É a eles que mais se assemelha a coelha de Kac.
Se a intencionalidade artística que está na origem do nascimento de Alba é suficiente para fazer dela uma obra de arte, então coloca-se uma outra questão: aquela da rotulação artística do ser vivo. A arte moderna possui sobre esse ponto uma já sólida tradição. Nos anos sessenta, Manzoni assinou modelos vivos. Warhol apresentou-se sobre um pedestal designando-se “escultura”. No registro animal, Broodthaers introduziu um papagaio vivo em sua exposição Ne dites pas que je ne l’ai pas dit [Não digam que eu não disse] (1974, Anvers, Wide White Space Gallery), Nam June Paik usou peixes vermelhos em seu Video Fish [Vídeo Peixe] (1979, Coleção Museu Nacional de Arte Moderna — Centro Pompidou). Mais perto de nós, Wim Delvoye expôs porcos vivos e tatuados; Maurizio Catalan, um asno; Bustamante, pássaros; Ping, insetos. Essa introdução de animais em obras de arte é uma resposta a um projeto que poderíamos chamar de “endógeno” à arte e a suas práticas. No início dos anos sessenta, no entusiasmo da redescoberta de Duchamp, Warhol e Manzoni contribuíram para a extensão das fronteiras da arte. Às obras recentes que recorrem a seres vivos estão geralmente associadas significações internas à prática, à história artística. Esses animais fazem parte de um discurso, narrativo ou crítico, cujo fim são a arte, seus limites, seu sentido, suas normas.
O GFP Bunny de Eduardo Kac não se insere em nenhuma seqüência discursiva ou demonstrativa. Ele não é elemento de uma instalação. Ele escapa à arte, aos códigos que a definem. Como o mictório de Duchamp, seu sentido reside inteiramente no enigma que constitui sua epifania. Enquanto a Fonte apelava a categorias que até então não pertenciam ao julgamento crítico, Alba, puro objeto científico, leva as interrogações que ela suscitava para além das (já expandidas) fronteiras de nossas categorias estéticas.
É somente Eduardo Kac, artista reconhecido que teve a idéia de sua criação, que confere a seu Bunny seu status artístico.
Qualquer “julgamento” lançado sobre a coelha albina implica questões endereçadas à ciência, a suas finalidades, a suas regras éticas. Uma primeira interrogação, ingênua, poderia pesar sobre o futuro artístico da ciência. Será que o cientista, munido do arcabouço da engenharia genética, está a caminho de se tornar artista?
A pergunta é feita explicitamente por Jeremy Rifkin, que analisa o pensamento da geração de pesquisadores “pós-modernos”. “Eles sustentam que não existe uma meta-narrativa definitiva ou verdades universais, mas apenas uma série de opções lúdicas, de mitos e de textos socialmente construídos e culturalmente elaborados. A vida é percebida menos como uma viagem de exploração do que como uma aventura criadora”. Rifkin descreve, para nos alertar, a figura do artista-cientista, liberto de “forças exteriores” e de “verdades universais”, para quem “… a criação é nossa criação”.
Não será justamente o perigo de um “futuro eugênico” que a coelha de Kac nos revela na forma de um inofensivo roedor? Não será a função primeira do GFP Bunny levar à praça pública, convidando à análise crítica, a nova situação descrita por Rifkin segundo a qual “a concepção do mundo natural como uma ‘progressão criadora e inovadora’ e das espécies vivas como ‘obras de arte’ é perfeitamente adaptada aos projetos de um futuro eugênico.”?
A Fonte, rejeitada pelos membros dos Independentes de Nova York, revelou as normas do julgamento estético de seu tempo (normas de uma época anterior à “submissão filosófica” da arte, que permaneciam ligadas aos valores manuais de execução, de originalidade). O que revela o aprisionamento ao qual foi condenada Alba?
Segredos científicos? Seguramente não. A utilização de marcadores coloridos fluorescentes é praticada nos laboratórios de biologia desde os anos setenta. O processo de criação do Bunny faz parte da mecânica genética de cursos elementares (em 1973, Stanley Cohen da Universidade de Stanford e Herbert Boyer da Universidade da Califórnia realizaram o primeiro transplante de fragmentos distintos de DNA).
Seria, então, o medo de soltar junto ao grande público um monstro capaz de despertar a angústia ligada à lembrança da antiga Quimera?
Bunny é de uma monstruosidade bastante inofensiva se comparada à quimera cabra-ovelha realizada em 1984 por pesquisadores ingleses ou, ainda pior, ao porco “enriquecido” com um gene humano de crescimento, concebido pelos pesquisadores do centro de pesquisa do ministério da agricultura americano: “excessivamente peludo, artrítico, sofrendo de estrabismo e letargia”. Não, decididamente, Alba nada tem de temível se comparada aos “porcos Schwarzenegger” (animais que misturam genes de frango e de porco a fim de alcançar uma maior massa muscular) ou às novas gerações industriais de frangos sem penas. Estas últimas pululam pelas colunas científicas de nossos jornais sem suscitar nenhuma comoção.
Os ready-made de Duchamp demonstraram que o museu era a instância legitimadora, capaz de transmutar qualquer objeto em arte.
Que efeito produz a transferência de um objeto científico para a esfera artística (um coelho transgênico, por exemplo)? Também ele sofre uma transmutação. No espaço da arte, o objeto da ciência revela potencialidades estéticas, um sentido inesperado. Ele se expõe a ser apreendido a partir de um ponto de vista formal (o porta-garrafas começa a parecer uma escultura de Pevsner; o mictório, um Brancusi). O objeto transplantado se vê investido de gratuidade, dos valores de transgressão que caracterizam as obras modernas. Alba, diante do observador da arte, escapa ao comparatismo formal (será ela mais harmoniosa, expressionista ou pop do que um coelho inox de Jeff Koons?)
Alba transpõe a ciência e suas indagações para o território da arte. Ela participa da mutação política (no sentido mais nobre) da arte contemporânea. Assim como Alice seguia seu coelho branco, sigamos todos Alba até os recantos maravilhosos de um país maravilhoso, no qual os roedores se assemelham a fantasmas de castelos escoceses e as galinhas têm dentes.


Didier Ottinger é curador-chefe do museu nacional George Pompidou, em Paris, onde foi curador das exposições “Os pecados capitais”, David Hockney, Philip Guston e Max Beckmann.


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