Primeira publicação em português em: Oroboro, N.1, Curitiba, 2004, pp. 34-37.


LANCE 36 [MOVE 36]

Eduardo Kac ( Tradução: Carlos Machado ).

“Move 36” faz referências ao dramático movimento feito pelo computador chamado “Deep Blue” contra o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov em 1997. Essa competição pode ser caracterizada como uma disputa entre o maior jogador de xadrez vivo e o maior jogador de xadrez não-vivo. A instalação ilumina os limites da mente humana e as capacidades crescentes de computadores e robôs, seres inanimados cujas ações freqüentemente adquirem uma força comparável à subjetiva ação humana.

De acordo com Kasparov, o momento essencial de Deep Blue no segundo jogo veio no "Lance 36”. Melhor do que apenas fazer um movimento que era esperado por expectadores e comentaristas – um movimento seguro que teria propiciado gratificação imediata – ele fez um movimento sutil e conceitual e, a longo prazo, melhor. Kasparov não pôde acreditar que uma máquina fez um movimento tão perspicaz. O jogo, para ele, foi perdido neste instante.

A instalação apresenta um tabuleiro feito de terra (quadrados negros) e areia branca (quadrados claros) no meio da sala. Não há peças de xadrez no tabuleiro. Posicionada exatamente onde o Deep Blue fez o seu “Lance 36” está uma planta cujo genoma incorpora um novo gene que eu criei especialmente para esse trabalho. O gene usa ASCII (o código universal do computador, empregado para representar o número binário como caracteres romanos, online e offline ) para traduzir a afirmação de Descartes: “Cogito ergo sum” ( “Penso, logo existo” ) nas quatro bases da genética (A, C, G, T).

Através de modificações genéticas adicionais, as folhas das plantas se curvam. Em um ambiente selvagem, essas folhas seriam planas. O “gene cartesiano” foi agrupado com um gene que causa essa escultural mutação na planta, para que o público possa ver, a olho nu, que o “gene cartesiano” é expresso precisamente onde as folhas se torcem e ondulam.

O “gene cartesiano” foi produzido de acordo com um novo código que eu criei especialmente para esse trabalho. No ASCII de 8bits, a letra C, por exemplo, é representada desta forma: 01000011.O gene é criado pela associação seguinte entre as bases genéticas e os dígitos binários:

A = 00

C = 01

G = 10

T = 11

O resultado é o seguinte gene com 52 bases:

CAATCATTCACTCAGCCCCACATTCACCCCAGCACTCATTCCATCCCCCATC

A criação desse gene é um gesto crítico e irônico, já que Descartes considerava a mente humana um “fantasma na máquina” (para ele o corpo era uma “máquina). Sua filosofia racionalista deu um novo ímpeto tanto para a divisão corpo-mente (dualismo cartesiano) como para os princípios matemáticos da atual tecnologia de computador.

A presença desse “gene cartesiano” nessa planta, enraizada precisamente onde o ser humano perdeu para a máquina, revela um limite tênue entre a humanidade, objetos inanimados dotados com qualidades semelhantes à vida e organismos vivos que guardam informações digitais. Um único feixe de luz paralelo brilha delicadamente sobre a planta. Projeções silenciosas em vídeo em duas paredes opostas contextualizam o trabalho, evocando dois oponentes de xadrez in absentia. Cada projeção de vídeo é composta por uma grade de pequenos quadrados, que representa um tabuleiro de xadrez. Cada quadrado mostra ciclos animados se movimentando em intervalos diferentes, portanto criando uma complexa série de movimentos coreografada cuidadosamente. O engajamento cognitivo do expectador com as múltiplas possibilidades visuais apresentadas em ambos tabuleiros projetados, sutilmente rivaliza o mapeamento dos caminhos múltiplos no tabuleiro da partida de xadrez.

Uma partida para jogadores fantasmas, uma afirmação filosófica revelada por uma planta, um processo escultural que explora a poética da vida real e da evolução. Essa instalação dá procedimento à minha contínua intervenção nos limites entre o ser vivo (animais humanos e não humanos) e o não vivo (máquinas, redes). Colocando em xeque noções tradicionais, a obra revela a natureza como uma arena para a produção de conflitos ideológicos, e as ciências físicas como um locus para a criação de ficções científicas.


Back to Kac Web