Originalmente publicado no catálogo do VII Salão Nacional de Artes Plásticas, organizado pela Funarte e realizado em 1984 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, pp. 43-44.


Poesia Holográfica: as três dimensões do signo verbal

Eduardo Kac

Lá pelos idos da primeira década do nosso século, no turbilhão dos movimentos de vanguarda, o desenvolvimento da linguagem cinematográfica levou Guillaume Apollinaire a afirmar que a era da tipografia havia chegado ao fim e que no futuro o poeta conheceria liberdades que naquele momento não eram sequer imagináveis.

Se o famoso poeta calígrafo-cubista pecou ao ser taxativo sobre a futura simbiose entre a poesia e as artes gráficas, não se equivocou ao sentenciar profeticamente que a poesia ainda seguiria rumos imprevisíveis. Da mesma forma que a galáxia de Gutenberg provocou profundas alterações na cultura humana e a eletrônica, em plena era da telemática, é responsável igualmente por mudanças radicais -- a holografia traz um contundente questionamento das formas convencionais de percepcão visual e, ao introduzir um método de registro tridimensional, abre possibilidades totalmente novas nos campos da expressão artística e do conhecimento científico.

Com as experiências levadas a cabo pela poesia visual, que estimularam as pesquisas individuais de inúmeros poetas, a consciência da página impressa e o conhecimento dos inúmeros recursos grafico/visuais levaram este código bidimensional a um ponto de saturação. Isto não significa, contudo, que não se possa fazer excelentes poemas visuais. Antes, ao contrário: o máximo que se pode realizar neste terreno são excelentes poemas. E ao poeta cabe ousar, conquistar o desconhecido, habitar a terra-de-ninguém onde as novas linguagens nascem e se multiplicam.

Com as vanguardas, a palavra conheceu seu momento máximo de liberdade na página, distante das amarras da linearidade aristotélica do verso. Mas o poeta do pós-moderno quer libertar a palavra da página, longe dos grilhões da bidimensionalidade da página impressa do poema visual. Como? Através da holografia, ou melhor, através da imagem real. A imagem holográfica pode ser virtual (atrás do holograma) ou real (na frente do holograma); ou ainda parte real, parte virtual, como se o filme holográfico seccionasse a imagem. Isto permite que o leitor abra um livro de poemas holográficos e o poema propriamente dito esteja flutuando no ar a 50 cm de distância da página, por exemplo. Sim, porque a holografia pode ser impressa com grandes tiragens e baixo custo -- o que fará dela indubitavelmente a forma de impressão do futuro.

Ao conceber o poema, o poeta deve estudar todas as possibilidades combinatórias entre as letras (objetos tridimensionais) e os ângulos de visão do espectador (paralaxe), que se norteiam vertical e horizontalmente. Ou seja, o layout de um holopoema se constitui da formulação das diversas formas de percepcão que o espectador terá, levando-se em consideração o grau de paralaxe do holograma.

Neste sentido, surge uma nova sintaxe vlsual que, em oposição ao branco mallarmaico, articula o poema a partir de volumes invisíveis, buracos negros tridimensionais. É por esta razão que o poema adquire independência do suporte e, pensando ainda em termos de imagem real, permite que o espectador passe a mão entre a página e a sua projeção holográfica.

Digo "espectador" no lugar de "leitor" porque o poema desencadeia uma decodificação perceptual incomum. O poeta também não "escreve"; ele cria o design, esculpe a matriz e holografa o objeto. No lugar da caneta, da máquina de escrever, ou da Letraset, o laser (light amplification by stimulated emission of radiation).

Meu primeiro poema holográfico foi realizado em dezembro de 83, com Fernando Eugênio Catta-Preta, em seu laboratório, em São Paulo. O anagrama paronomástlco HOLO/OLHO foi holografado (caixa alta, corpos grandes e pequenos) cinco vezes. Depois criei uma espécie de holocollage, fragmentando e remontando as quatro imagens pseudoscópicas do poema. A imagem pseudoscópica é o avesso da imagem que reproduz o objeto assim como foi holografado (ou imagem ortoscópica).

Desta forma, o poema é a interpenetracão tridimensional das palavras esculpidas em luz. Cada fragmento é concebido simetricamente a formar uma leitura em círculo: as duas palavras possuem quatro letras e as duas primeiras letras de "OLHO" (corpos pequenos) formam "olho" com as duas primeiras letras de "HOLO" e as duas últimas formam "holo" com as duas últlmas de "HOLO" (corpos grandes). Pares de "O" ainda sugerem olhos humanos.

Através de uma instalação com luminárias é posslvel fazer com que as letras fiquem em movimento constante (holokineticismo), enquanto o espectador pode, se quiser, observar o poema parado. As possibilldades, enfim, são infinitas.

Mesmo diante das evidências, ainda há os que criticam ceticamente a high-tech art e que pensam que a holografia é apenas um modismo. Mas ela é uma realidade e não veio para trazer messianicamente respostas. O poeta do século XXI trabalha a linguagem holográfica e busca perguntas. O que ele quer ninguém sabe.

A poesia é um enigma tridimensional.


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