A sair em Revista do Centro de Comunicação e Artes do SENAC, São Paulo.


Entrevista com Eduardo Kac
Por Lucia Leão
Revista do Centro de Comunicação e Artes do SENAC (a sair)



Eduardo, voce poderia falar um pouco sobre a estratégia que você adota para desenvolver seus projetos artísticos?

Meus trabalhos gravitam ao redor de questoes centrais que informam minha reflexão, tais como: a relação e as fronteiras do ser humano com outras formas de vida não humanas; o limite entre o biológico e o tecnológico, formas de percepção do mundo que não sejam simplesmente baseadas no aparelho sensorial e cognitivo humano; a comunicação entendida não como transmissão de informação mas como um processo vital; o dialogismo; a tensão entre conceitos como local/remoto e analógico/digital; e o papel da tecnologia na evolução e na vida social. Cada obra gera um salto cognitivo que leva à proxima obra.

Como você vê, na cena contemporânea, as relações entre arte e ciência?

Vários artistas se interessam por esta relação, mas a maioria ou aborda o problema através de metáforas representacionais (pintura, escultura) ou o faz através de meios eletrônicos mas de forma tímida. Entretanto, há artistas que trabalham de forma transgressiva, sem salvaguardar fronteiras retrógradas, e que portanto contribuem, ao mesmo tempo, para o debaté social e para o desenvolvimento de novas forms de arte. Bons exemplos seriam Stelarc, Orlan, Mark Pauline (SRL).

Em 1997, seu trabalho Time Capsule, apresentado na Casa das Rosas, em São Paulo, discutia as mutações biológicas decorrentes da implantação de memórias digitais e artificiais em nossos corpos. Como você vê essa questão hoje?

Nos poucos anos que se passaram entre Time Capsule e as obras recentes ficou claro que a presença do microchip sob a pele já indicava a idéia de que no futuro as grandes transformações se dariam numa escala diminuta, de forma invisível, como se passa na engenharia genética. A manipulação genética cria um novo contexto para se pensar a questão da memória e sua transmissão.

Você tem trabalhado bastante com essas trocas entre sistemas diferentes. Na obra "A positivo" retirava-se sangue de seu braço para se acionar um robô?. Seu sangue era o combustível que acendia uma faísca no coração de vidro do robô?. Fale-nos um pouco sobre como você vê essa releção homem-máquina.

A obra A-positivo criava a catégoria do biorobô, ou robô biológico. O robô extraía oxigênio do sangue humano para assim suportar a pequena chama (nanochama). A obra apontava para o fato de que no futuro veremos o que chamo de "inversão do vetor cyborg", ou seja, em vez de a tecnologia migrar para o biológico, agora é o biológico que migra para o tecnológico. Esta migração não é metafórica apenas; o biológico opera uma funcao real, observavel, com consequencias fisicas, dentro de um corpo (ou contexto mais amplo) tecnologico. A outra dimensão é o link da biorobôtica com a telemática, que já exploro em The Eighth Day (O Oitavo Dia).

Você tem realizado propostas colaborativas online desde 1985. Nas transformações que você deve ter observado na participação do público você teria algo especial a comentar?

Nos anos 80, e até 1994, havia um caráter completamento improvisacional, pois as redes eram concebidas, implementadas e, depois dos eventos efêmeros, dissolvidas. Com a Internet surge uma certa c, à qual sempre tentei resistir, tentando manter as possibilidades de interação (desde o interface até a topologia da rede) o mais abertas possiveis. A grande transformação é que hoje o público assume e espera um certo nível de participação através da rede, ou seja, a interatividade já é parte integral do vocabulário da arte contemporânea.

Em seu trabalho, Teleporting an Unknown State, os visitantes da WWW podem alimentar uma planta, situada em uma galeria, através do ato de clicar sobre imagens de cidades. Você gostaria de nos contar o por quê desse título?

Mais importante do que imagens de cidades, se trata de imagens que mostram o céu destas cidades, de forma que a luz do céu/sol ao redor do planeta possa alimentar a planta em um ambiente escuro remoto. Na primeira versão, de 1996, os participantes remotos apontavam individualmente sua camera para o céu por quanto tempo julgavam adequado. O titulo da obra é composto das primeiras quatro palavras de um título mais longo, que é o título do primeiro "paper" científico sobre a teleportação quântica. Este recorte poético acentua o teleporte de fótons que torna a obra possível e também o seu caráter desconhecido. A obra faz parte do que chamo "biotelemática", a fusão entre a telemática e processos biológicos.

Para mim ficou marcante o fato de que em seu projeto, o ciberespaço surge como um território intersticial, onde dois conceitos opostos, o dentro e o fora se encontram na interação do usuário. Com o clicar sobre as imagens, levamos para um ambiente fechado, uma imagem de fora, vinda de várias partes diferentes do mundo. Como você vê essas questões?

Nunca me interessei exclusivamente pelo caráter virtual da rede, por conta do risco de se tornar apenas um meio de difusão de grafismos e de interatividade monológica. A avalanche destas gratuitas animações de Flash que hoje permeiam a rede sao bom exemplo. Me interesso pelas redes como meio de criação dialógica e intersubjetiva, por isso trabalho na aproximação de elementos ordinariamente percebidos como irreconciliaveis, como dentro/fora, perto/longe, homem/máquina, e animal/robô.

Depois de um tempo de interação, percebe-se uma releção entre luz (nesse caso, o objetivo do jogo) e o horário local das cidades clicáveis. Achei muito interessante nesse projeto o fato de que o para o internauta interferir de uma forma mais diretiva ele precise associar o horário da cidade escolhida com relação à possível emissão de luz. Você teve esse tipo de preocupação?

Sim. Como disse acima, este é um aspecto fundamental do trabalho. Vale ainda mencionar que a "grid" com as imagens forma o mapa do planeta. Nesta obra sempre coloco o país que exibe a obra no "centro do mundo" e organizo os demais países ao seu redor. No caso, no ano 2001 a obra está viajando nos EUA (em 1998 esteve na Eslovenia). Assim, acima dos EUA temos Greenland e abaixo o Brasil. No leste temos França, Israel, e África do Sul. No Oeste temos Rússia, Japão, e Australia.

Você criou o conceito de "arte transgênica", em 1999 com sua obra "Genesis", presente no festival Ars Eletronica, em Linz, Austria. Fale um pouco sobre esse conceito.

A arte transgênica se baseia no uso da engenharia genética para criar novas formas de vida. É preciso respeitar estas formas de vida, trazê-las para coabitar nosso espaço social e doméstico, ama-las e cuida-las com a mesma atenção e afeto dados a outras formas de vida não-transgênicas. Escrevi amplamente sobre esta questão, e meus textos, bem como os de muitos outros sobre o tema, podem ser encontrados aqui: http://www.ekac.org/transgenicindex.html.

De lá para cá muitos artistas têm trabalho com poéticas biológicas. Quais são os artistas que você mais admira nessa linha de pesquisa?

Na verdade não há muitos artistas trabalhando com a biotecnologia como meio. Há muitos trabalhando com a biotecnologia como tema, mas é preciso manter clara a diferença entre os dois. Há que mencionar também artistas que fazem trabalho fundamental com a biologia, mas sem necessariamente usar a biotecnologia, como George Gessert.

Você é hoje o Diretor de um curso de Arte e Biologia, na School of the Art Institute of Chicago. Você poderia nos falar, em linhas gerais, como é esse curso, o que ele propõe?

O curso é divido em três partes e aborda a biologia e a biotecnologia de três ângulos específicos: o político/social, o artístico, e o ético. Leituras incluem Richard Doyle, Donna Hardaway, e Richard Lewontin, entre muitos outros.


Back to Kac Web