Publicado em inglês em Leonardo Electronic Almanac, December 1999, n.p.n. Publicado em português em Medusa, Ano 1, N. 8, Dez-Jan 99/2000, Curitiba, pp. 28-31. Tradução: Ricardo Corona.


Do corpo para o robô e vice-versa


Machiko Kusahara


Quando Eduardo Kac expôs sua obra “Teleportando Um Estado Desconhecido" (Teleporting an Unknown State) no Siggraph 96, em Nova Orleans, nos Estados Unidos, o público deve ter se perguntado como se poderia transferir a luz do sol via Internet. Se não fosse fornecida a quantidade suficiente de luz, a planta recém brotada, que foi plantada na escuridão total na Siggraph Art Gallery, morreria.

Neste projeto qualquer participante, de qualquer parte do mundo, pode captar os fótons usando sua própria câmera na Web e “enviar os fótons” via Internet por meio de videoconferência. Os sinais serão imediatamente transferidos para o computador no local da exposição acionando assim um projetor suspenso sobre a planta. Só a vontade de colaborar dos participantes manteria a planta viva e em desenvolvimento. Esta planta cresceu de uma semente sem conhecer o mundo exterior e a verdadeira luz solar.

“Teleporting an Unknown State” pode ser comparado ao “Telegarden” de Ken Goldberg no sentido de que envolveu uma planta real, e de que os visitantes da rede partilharam a responsabilidade de cuidá-la. Entretanto, há algo muito diferente em “Teleporting an Unknown State”. É um elemento que pode ser associado com a última parte do título “Unknown State” (“Estado Desconhecido”). Embora um “elemento” não material como fóton ou rede seja o meio ou o veículo para um tal fenômeno físico como pessoas enviando luz suficiente para uma planta, na obra de Kac observamos um forte desejo de compromisso em relação à entidade física e o envolvimento do próprio corpo de alguém.

Isto pode estar profundamente relacionado ao fato de que Kac nasceu e cresceu no Brasil e então mudou-se para os Estados Unidos. Há uma certa similaridade com Stelarc que nasceu na Austrália e viveu no Japão por um tempo antes de começar a usar a tecnologia eletrônica em suas performances. O confronto com culturas diferentes inevitavelmente causa um interesse pela própria identidade incluindo o papel do corpo físico. Da mesma forma, artistas como Kac ou Stelarc diriam que não acreditam totalmente na Utopia do espaço virtual (cyberspace, o mundo virtual das redes de computadores como a Internet). Na apreciação das obras de Kac não podemos abandonar ou ignorar o mundo real e físico, pois estas chamam atenção para nosso poder de ação corporal no espaço virtual. Sua obra na rede nos torna conscientes de nossos próprios corpos, bem como o de plantas, animais, e outras formas de vida.

Sob o ponto de vista da telerobótica, nenhum elemento mecânico ou cinético foi ativado por participantes na rede em “Teleporting an Unknown State”. Todavia, a natureza da interação física (neste caso ótica) criada pela obra e o modo engenhoso para transmitir tal interação física pela Net podem ser considerados novas possibilidades na arte telerobótica. Entre os projetos desenvolvidos por Kac, que é conhecido como “artista da telepresença”, trabalhos como “Ornitorrinco” e “Rara Avis” estão mais diretamente relacionados à noção de telerobótica.

No projeto “Ornitorrinco”, que começou em 1989 e foi exibido em várias configurações diferentes até 1996, os participantes podiam mover um pequeno robô de um lado para outro em tempo real usando uma conexão de videoconferência.. O “Ornitorrinco in Eden” aconteceu em 1994, e foi, junto com o “Mercury Project” (1994) de Goldberg, a primeira obra de arte telerobótica na Internet. A principal questão neste projeto foi a experiência dos participantes e a supremacia do tempo real sobre o espaço real. Ou seja, participantes atuaram ao vivo sobre um espaço físico apesar da distância geográfica. O robô reagia a cada input dos participantes ao invés de ser programado para um determinado objetivo ou ação, compartilhando assim o poder decisório e criando um contexto de multi-usuários. Uma vez mais, tal consciência em favor da democracia e do tempo/espaço reais mostra a atitude básica de Kac em relação à tecnologia e a arte interativa bem como em em relação à sociedade.

Em “Rara Avis” (1996), um visitante entra em uma sala triangular e encontra uma gaiola à sua frente. Há um grupo de pássaros monocrômicos na gaiola e uma grande e colorida arara vermelha telerobótica. Há um visor de realidade virtual sobre o pedestal. Quando o visitante ajusta em si este visor, descobre que ele está vendo através dos olhos da arara eletrônica. O visitante reconhece a si mesmo através dos olhos do pássaro-robô, visto de dentro da gaiola. Na medida em que o observador move sua própria cabeça o mesmo movimento acontece com a cabeça da arara causando assim mudança na cena a ser vista sobre o monitor.

Aqui, a identidade do observador e sua posição é “capturada” em um interminável circuito envolvendo interior e exterior, liberdade e cativeiro, ver e ser visto, manipular e ser manipulado. A cerca divide o espaço livre que se abre para o mundo exterior (lembre-se, a sala é triangular) do estado de aprisionamento dentro da gaiola que conduz a uma extremidade estreita. A configuração do espaço é metafórica em ambos os aspectos, psicológico e social. De um ponto de vista epistemológico, a tecnologia telerobótica coloca o observador em ambas as posições, fora e dentro da gaiola. Diz-se que recebemos aproximadamente 90% da informação que obtemos do exterior através do nosso sistema visual. E nossa cognição é formada baseada no input que obtemos. Então, a consciência do observador, neste caso, estaria vagando dentro da gaiola, enquanto seu corpo permaneceria fora da gaiola.

O trabalho evoca questões sobre a realidade de nossa vida através de contradições, como é mostrado no contraste entre pássaros monocrômicos reais e o pássaro colorido artificial (robô) dentro da gaiola. Em nossa vida cotidiana damos por certo que vivemos em um mundo real único, com um único corpo e consciência – mas é nossa condição realmente tão segura? Com o advento da Internet, viver virtualmente em uma outra comunidade (ou um outro espaço) está se tornando comum. Ter um outro ‘eu’ em um outro mundo como um avatar é também possível. Mas então, onde vivemos – onde estão nossos corpos? A realidade da vida está ligada ao espaço do qual fazemos parte com o corpo físico, ou ao espaço ao qual nossa consciência pertence? Ou fazemos parte de diferentes espaços ao mesmo tempo em um circuito de realidades variáveis? Com uma vida que pertence a culturas diferentes no mundo real, Kac visualiza os problemas que encararemos em um futuro próximo com as metáforas apresentadas em sua obra. “Rara Avis” é um trabalho complexo, que se multiplica em múltiplas interpretações.



Machiko Kusahara é crítica de arte eletrônica. Ela leciona na Universidade de Kyoto e faz curadoria de exposições para a Nicograph e o InterCommunication Center (ICC) em Tóquio. Seus escritos sobre arte eletrônica foram publicados em diversos livros, jornais e revistas em todo o mundo.


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