Revista Ciência Hoje, Maio 2009.


EDUARDO KAC

A POÉTICA DA COMUNICAÇÃO ENTRE ESPÉCIES

Sheila Kaplan

A arte pode criar novas formas de vida. Esse conceito tem guiado as obras produzidas pelo artista plástico brasileiro Eduardo Kac, radicado há 20 anos em Chicago, nos Estados Unidos. Trabalhando com bioarte desde a década de 1990, ele chamou atenção, no cenário internacional, ao criar, em 1999, sua primeira obra transgênica, intitulada “Gênesis”, na qual criou um gene sintético que codifica uma frase da Bíblia. Já em 2000 o artista apresentou sua segunda obra transgênica, intitulada “GFP Bunny” -- Alba, a coelha fluorescente que brilha no escuro. O animal, produzido por Kac no laboratório de engenharia genética do Instituto Nacional de Pesquisas Agronômicas, em Jouy-en-Josas, França, brilhava por ter proteína verde fluorescente (PFV) de uma água-viva do oceano Pacífico (a medusa Aequorea victoria). Alba adquiriu esta característica porque o artista introduziu dentro do ovo de um coelho albino, em microscópio, a sequência genética que produz PFV, resultando assim no animal com a nova característica. Kac tinha planos de levar Alba para sua casa, onde, segundo o artista, “ela se integraria à família, formando assim um grupo social de quatro mamíferos, sendo que um deles brilha no escuro”. Mas, no último momento, ao contrário do que havia sido acordado, o diretor do laboratório censurou a obra e impediu que o artista a levasse a Chicago.
Este ano, ele apresenta nova obra de arte transgênica, um ser que é parcialmente flor e parcialmente humano. Ele batizou este organismo híbrido de Edunia, nome que evoca o seu próprio e o do gênero botânico utilizado, a petúnia. O trabalho, denominado História Natural do Enigma, está exposto no Museu de Arte Weisman, em Minneapolis, nos Estados Unidos, de abril a junho. História Natural do Enigma recebeu o Golden Nica Award, o premio de maior prestígio internacional na arte com novos meios e o maior premio concedido pelo Ars Electronica, este festival e museu europeu, com sede em Linz, na Áustria, que em 2009 festeja seu trigésimo aniversario.
Para Kac, o que está em jogo é “a reflexão sobre a contigüidade da vida entre as diferentes espécies”. Mesclando poesia, ciência, filosofia e tecnologia, ele propõe que o artista contemporâneo possa ser, não apenas um criador de objetos, mas também de sujeitos. Assim, o artista constrói redes de comunicação entre humanos, animais, plantas, microorganismos e máquinas. Tão original quanto controverso, ele fala sobre seu trabalho nessa entrevista à Ciência Hoje.



Em História Natural do Enigma, você criou uma flor geneticamente modificada. Poderia falar sobre esse trabalho e suas intenções ao criá-lo?
A obra central nessa série é um ‘plantimal’, uma nova forma de vida que criei, uma flor geneticamente modificada que é um híbrido de mim e de uma petúnia. A nova flor é uma cepa de petúnia que eu produzi utilizando biologia molecular. Ela não é encontrada na natureza. A Edunia expressa o meu DNA em suas veias vermelhas. Em cada célula dessas veias um gene meu está expresso, ou seja, meu gene produz uma proteína apenas na rede venosa da flor. O gene foi isolado e sequenciado do meu sangue. O fundo rosa das pétalas, contra o qual se destacam as veias vermelhas, evoca meu próprio tom de pele, rosado. O resultado dessa manipulação molecular é uma planta que cria a imagem viva do sangue humano correndo nas veias de uma flor. Esse trabalho foi desenvolvido entre 2003 e 2008 e inclui, ainda, uma escultura pública em grande dimensão, fotografias e uma série de litografias com um conjunto de pacotes de sementes da Edunia, que, no futuro, quem sabe, poderão ser distribuídas e plantadas por toda parte.

Você define sua arte como transgênica. O que significa isso?
A arte transgênica, conforme eu proponho, é uma nova forma de arte baseada no uso da engenharia genética para criar seres vivos únicos. Essa é uma resposta preliminar, equivalente a definir a pintura como a arte de aplicar pigmentos sobre uma superfície, ou seja, uma resposta que apenas começa a definir o campo material da arte transgênica. Indo mais adiante, começamos a ver que nestes anos todos (meu manifesto “Arte Transgênica” é de 1998) venho desenvolvendo obras que, sem jamais abrir mão de sua dimensão poética, subjetiva e experimental, procuram romper com as dualidades que ainda estruturam nosso pensamento, tais como vivo e não-vivo, local e remoto, biologia e tecnologia, humano e não-humano. Cada obra aborda estas questões à sua maneira, mas todas implicam a criação de nova vida, isto é, vida que a natureza não produziu. Na arte transgênica a criação da vida biológica é o meio. Sem metáforas. Vida como a sua e a minha.

O seu trabalho tangencia a filosofia, a ciência, a literatura, a tecnologia, a comunicação. Há nele um questionamento da ciência atual, já que, ao contrário desta, suas obras não propõem uma aplicação prática?
Não, não é minha intenção. Eu sou artista e o que faço é arte, pura e simplesmente. O meu trabalho não busca fazer nenhum tipo de comentário sobre a ciência, assim como [o artista francês precursor da arte conceitual] Marcel Duchamp [1887-1968] não buscava fazer “comentários” sobre banheiros, nem [o artista plástico norte-americano] Jackson Pollock [1912-1956] sobre manchas. Eu simplesmente trabalho com meios de criação da contemporaneidade na produção de obras de arte que dão corpo à minha visão da arte: uma visão que oscila entre a dimensão poética (criação de novos universos) e a dimensão filosófica (indagação sobre questões fundamentais sobre o mundo e a existência). Meu trabalho apresenta, de um lado, a criação consciente de uma nova linguagem, e de outro, um repertório temático pessoal, subjetivo. Mas é importante lembrar que nenhuma obra de arte precisa ser “sobre” alguma coisa; uma obra de arte é, ela mesma, a coisa. Muitas obras comunicam por sua presença, e não por referência a algo.

Um trabalho seu que alcançou grande repercussão foi "GFP Bunny", a coelha transgênica fluorescente. Que limites éticos se impõem quando se trata de criação de vida, e não de simples obras de arte?
Quando a vida é criada no contexto da arte, ela é arte. A "simples obra de arte" à qual você se refere é arte inanimada, arte inerte, fundamentalmente voltada para a criação de objetos. A criação de vida precisa ser feita com grande cuidado, com reconhecimento das complexas questões levantadas desse modo e, acima de tudo, com o compromisso de respeitar, nutrir e amar a vida assim criada. Como um artista transgênico, não estou interessado na criação de objetos genéticos, mas na invenção de sujeitos sociais transgênicos. Em outras palavras, o que é importante é o processo integrado de criação da coelhinha Alba, trazendo-a para a sociedade, oferecendo-lhe um ambiente afetivo, no qual ela possa crescer segura e saudável. O artista transgênico não cria objetos, cria sujeitos -- e sujeitos demandam respeito, carinho, cuidados, responsabilidade.

Como se dá seu trabalho de pesquisa? Costuma trabalhar juntamente com cientistas?
Os meios de criação transgênica de que eu preciso permanecem indisponíveis em caráter privado, exatamente como os grandes computadores nos anos 1960 e 1970. Assim, eu tenho que ir onde estão os meios de produção, isto é, aos laboratórios.

Como tem sido a recepção dos cientistas a essa proposta? Há desconfiança da parte dos pesquisadores?
Não há desconfiança da parte dos pesquisadores. E nem poderia haver. A engenharia genética é um meio de criação da arte, não é e nem poderia ser privilégio exclusivo de um grupo. Imagine se apenas profissionais de TV trabalhassem com vídeo. A vídeo arte não existiria. Quanto à recepção, ao pensar a arte, não me parece fazer muito sentido privilegiar um grupo profissional. Para fazer suas esculturas, Richard Serra usa estaleiros, mas não nos ocorre indagar sobre a reação específica dos engenheiros que produzem as esculturas. Koons flutua bolas de basquete em tanques, mas não perguntamos sobre a reação de Kobe Bryant. Hirscht flutua tubarões, mas não nos ocorre perguntar o que pensam os pescadores em particular. Por que? Porque uma obra de arte não se dirige exclusivamente a um grupo. Seu campo é a cultura. A obra de arte se dirige a todos. E, como se é de esperar, cada pessoa reage de forma diferente.

Pode descrever como se deu a criação da Edunia?
Eu comecei a trabalhar na Edunia em 2003. O processo levou cinco anos porque segui vários caminhos que não estavam dando certo, até que finalmente tive uma idéia que funcionou. A Edunia nasceu em 2008, no laboratório de Neil Olszewski, na University of Minnesota, St. Paul, Minnesota, e ficou este tempo crescendo em uma greenhouse na Universidade. Ela é estável e meu DNA está integrado no cromossomo. Recentemente coletei sementes que, dentro das “Edunia Seed Packs” (Pacotes de Sementes Edunia), fazem parte da coleção permanente do Museu de Arte Weisman. É bom saber que a Edunia poderá ser plantada e exibida no futuro.

Você acredita que no futuro este tipo de arte que explora fronteiras com a biotecnologia, robótica, internet etc. vai se tornar hegemônica? Há muitos artistas hoje trabalhando com isso?
As novas gerações, que crescem com internet e biotecnologia, apreciam culturalmente a poética destes novos meios. Ou seja, como cantava Chico Buarque, “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”... De uma certa maneira você poderia dizer que arte digital hoje é hegemônica no sentido de que o computador está imbricado em quase todas as facetas da atividade do ser humano (cultural ou não). Mas isto seria falso porque o uso do computador para escrever um soneto clássico ou pintar um quadro impressionista obviamente não é arte digital. Ainda assim, muitos artistas criam videos, websites, e outras obras usando computadores e telefones celulares. A arte robótica e de telepresença têm crescido e todos os anos vemos novos nomes surgirem ao redor do mundo. O mesmo ocorre na bioarte: o movimento, com seus vários partiicipantes, está documentado no meu livro publicado pela MIT Press: Signs of Life: Bio Art and Beyond [Sinais de Vida: A Bioarte e Mais Além]. Ha obras de bioarte em coleções de museus e coleções particulares. Até a arte digital dos anos 60 está sendo redescoberta e entrando para coleções de museus ao redor do mundo. Mesmo com tudo isso, por conta de sua predominância no mercado de arte, hegemônica mesma é a pintura. Então, talvez a pergunta não seja se a arte robótica ou a bioarte se tornarão hegemônicas, mas quais os limites da pintura em corresponder às mudanças culturais em curso no século XXI e de que maneira as novas formas de arte refletem e partcipam ativamente na criação de uma nova cultura.

Você acredita que há condições de desenvolver esse tipo de trabalho no Brasil?
Moro em Chicago há 20 anos, mas neste período também vivi em Paris, onde trabalho e para onde vou regularmente. No Brasil, sou representado pela galeria de arte Laura Marsiaj, do Rio de Janeiro. Embora eu trabalhe e venha ao Brasil com certa frequência, como ainda não tentei, não saberia dizer se é possível fazer o que faço hoje no país.

O espectador dos seus trabalhos precisa ser familiarizado ou ter uma formação técnico-científica? Que espécie de recepção seus trabalhos têm encontrado junto ao público?
Não, de jeito nenhum. O que faço é arte, e arte é arte, não importa o meio utilizado. A arte sempre oferece diferentes níveis de experiência, e meu trabalho não é exceção. Assim, a recepção varia de acordo com período e local.

Como tem sido a recepção de sua arte no Brasil? Há preconceito em relação a essa nova proposta? E nos outros países?
A recepção do meu trabalho no Brasil tem duas fases distintas: nos anos 80 até 1988, quando eu vivia no Brasil, e a partir dos anos 90, quando passei a viver em Chicago. Na primeira fase, quando criei a poesia holográfica, ou holopoesia, a partir de 1983, e criei obras de telecomunicação, especialmente minha primeira obra de telepresença, em 1986, a recepção foi boa de crítica e público, mas praticamente inexistente no mercado. Ainda assim, foram poucos os que compreenderam na época que a holopoesia abria caminho para as novas poéticas interativas, fluidas, multimodais, cinestéticas, informacionais. Vale lembrar que já em 1987 criei meu primeiro holopoema digital, "Quando?", que foi a presentado na Funarte do Rio em 1988. Mais tarde, com a primeira edição de meu livro "Media Poetry", em 1996, e especialmente com segunda edição, em 2007, começou-se a compreender melhor o significado da ruptura que foi a holopoesia, que desenvolvi de 1983 até 1993. Já nos anos 90, me dirigindo mais diretamente a um público global, a recepção se torna mais complexa, no sentido que meu trabalho se transforma, eu produzo e circulo em vários países, e contextos culturais locais afetam a percepção do público. Por exemplo, de uma maneira geral, na Europa há uma certa inquietude com relação à bioarte, mas há ao mesmo tempo grande respeito e interesse por ela. Nada é preto no branco. E mais: a recepção muda no tempo. Em 1999, quando apresentei "Genesis" no Ars Electronica pela primeira vez, muita gente ficou profundamente chocada. Para que se compreenda o que isto significou na época, lembremos que o Ars Electronica reune a elite da arte digital, que ainda assim ficou chocada com a bioarte em 1999! Hoje, em 2009, dez anos depois, minha nova obra transgênica, "História Natural do Enigma", recebeu no mesmo Ars Electronica o Golden Nica Award. O mundo mudou muito nestes últimos dez anos — e com ele a recepção da minha obra.

Já lhe ocorreu conceber uma obra que não pôde ser executada devido a dificuldades técnico-científicas? Poderia exemplificar?
Só me interesso por obras que posso produzir, não importa quanto tempo demore. Eu tenho paciência. A História Natural do Enigma demorou cinco anos.

Está em seus planos trabalhar com dimensões nanométricas?
O DNA mede 2 nanômetros, ou seja, trabalho em escala nano desde 1999, quando criei meu primeiro gene sintético.

Você acredita que chegará um momento em que não mais haverá divisão entre ciência e arte?
Não.

Por que? Por que usam diferentes linguagens?
Embora a ciência use recursos materiais e visuais inventados por artistas, como a fotografia e uso de cores falsas, por exemplo, a lógica da ciência é oposta à da arte. A ciência se baseia, fundamentalmente, em hipoóteses, experimentos, e provas conclusivas. Boa ciência é ciência repetível. Se uma outra pessoa não pode repetir o que você fez e seus resultados, você não produziu "verdade". A arte é pessoal. O artista é um hacker, um creador de mundos, um piloto do foguete chamado liberdade. A arte é uma singularidade. Se uma outra pessoa repetir o que você fez e seus resultados, esta pessoa estará praticando plágio. A ciência se concentra no funcionamento do mundo físico. Na arte, interessa aquilo que você contribui como linguagem plástica e construção de universos simbólicos.

Em 1997, com "Cápsula do Tempo", você implantou um microchip digital em seu próprio corpo. Qual era seu objetivo então? Esse experimento continua de algum modo?
Essa obra focalizava o problema de interfaces orgânicas e a hospedagem humana de memória digital por meio da implantação de um microchip. O trabalho consistia em um implante de microchip, que fiz com transmissão ao vivo na TV e na internet, em frente a uma série de sete fotografias em tom sépia, trazidas por minha avó de Varsóvia em 1939. Incluía também o escaneamento telerobótico interativo do implante, ou seja, a informação contida no chip foi lida diretamente na internet, e uma intervenção remota em banco de dados on-line (ou seja, uma vez lido o conteúdo numérico do microchip em meu corpo, usei este número para me inscrever como cachorro e ser humano responsável pelo cachorro em uma base de dados para o registros de animais perdidos). Na exposição havia ainda elementos adicionais, como um raio-X do implante, feito no dia seguinte. A Cápsula do Tempo foi um momento decisivo no meu trabalho. A obra recebeu em 2006 o primeiro prêmio de arte digital na Arco, a feira de arte contemporânea, na Espanha, e foi então adquirida pela empresa BEEP como parte do prêmio ARCO/BEEP. Faziam parte do júri, entre outros, curadores do Museu Whitney, de Nova York, e do Tate, de Londres. Na retrospectiva que realizei em 2007 no Museu de Arte Moderna de Valência, na Espanha, apresentei esta obra e, no dia da abertura, o público presente, bem como as pessoas acessando a internet, puderam ativar o microchip, lendo o seu conteúdo. Assim, celebramos o décimo aniversário da obra e do implante. Essa obra está também documentada no meu livro Telepresence and bio art: networking humans, rabbits and robots [Telepresença e bioarte: humanos, coelhos e robôs em rede], publicado pela Editora da Universidade de Michigan em 2005.

Poderia esclarecer sua afirmação de que seus trabalhos tratam basicamente de comunicação, desde a interação molecular entre células até o diálogo humano, da comunicação animal à comunicação remota via redes?
A comunicação é um fenômeno que vai muito alem de um artigo de jornal ou uma emissão de televisão. A comunicação é um fenômeno básico e radical, ou seja, cria a base e está na raiz da realidade, desde a comunicação entre células e a comunicação interespécies até a comunicação não semiótica de temperatura que ocorre quando se abre uma janela. Em meu trabalho, busco explorar a polivalência do fenômeno comunicacional.


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