Originalmente publicado na edição especial sobre ciência e arte de História, Ciência, Saúde Manguinhos, editada pela Casa de Oswaldo Cruz/ Fundação Oswaldo Cruz, Outubro 2006, vol. 13 suppl., pp. 247-256.


MESCLANDO BIOARTE, CIÊNCIA, MÍDIA E BIOSSEGURANÇA: UMA ENTREVISTA COM EDUARDO KAC*

 

Eduardo Kac – Artista, nascido no Brasil, internacionalmente reconhecido por suas instalações interativas, trabalhos com holografia e bioarte. Desde os seus primeiros experimentos nos quais convergem o digital e o biológico, investiga as dimensões políticas e filosóficas dos processos de comunicação. Em 2004 exibiu na Bienal de São Paulo a obra Move 36, que incluía uma planta transgênica de sua criação. (http://www.ekac.org)

 

Dolores Galindo – Doutoranda em Psicologia Social, pesquisadora do Grupo Práticas Discursivas e Produção de sentidos PUCSP. Atualmente desenvolve tese de doutorado sobre as relações entre Bioarte e Biossegurança (http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/controladorbuscacv)

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Apresentação

      Eduardo Kac é, sem dúvida, um dos mais destacados artistas contemporâneos habitando a zona fronteiriça entre arte e tecnologia (Genesis, 1999; GFP Bunny, 2000; O Oitavo Dia, 2001; Move 36, 2004). Desde meados dos anos 90 sua obra investiga a poética da vida e da evolução (Rara Avis, 1996; A-positivo, 1997; Time Capsule, 1997). Entretanto, resumir sua trajetória às experimentações recentes com materiais biológicos seria extremamente reducionista. Já nos anos oitenta, este artista trabalha com holografia e sistemas de telecomunicação, promove a ruptura de fronteiras entre humanos e máquinas, e realiza sua primeira obra de telepresença (telerobótica).

      Como deixa claro ao longo da entrevista, Eduardo Kac escreveu sistematicamente para a imprensa ao longo dos anos 80 no sentido de difundir idéas e contribuir para gerar condições de recepção para sua própria obra.  No prefácio do livro Luz & Letra (ed. Contracapa, 2004) que agrupa artigos produzidos pelo artista entre os anos de 1982 e 1988, Paulo Herkenhoff sabiamente propõe indagar-nos se o tipo de arte desenvolvida pelo artista tem condições de ser realizada, atualmente, no país. Numa época em que museus de arte e instituições culturais começam a incorporar a criação digital, a obra de Kac alarga os horizontes através do uso da engenharia genética como meio de criação artística. Suas obras têm sido exibidas em grandes exposições internacionais como a Trienal de Yokohama, no Japão, ou a Bienal de São Paulo.

      Apesar da visibilidade adquirida pela obra de Eduardo Kac, resta ainda um largo caminho político para que sejam ampliados os espaços de diálogo e de colaboração entre artistas e cientistas brasileiros que desenvolvem trabalhos na área de biotecnologia. Quais instâncias governamentais e da sociedade civil deveriam participar do diálogo? Quais implicações, em termos éticos e de biossegurança, são suscitadas por possíveis colaborações? Como pensar políticas de financiamento para trabalhos artísticos que envolvam uso de materiais biológicos nas agendas oficiais brasileiras? São estes alguns dos questionamentos que se sobressaem e que fazem da presente entrevista uma excelente oportunidade para a reflexão.

 

Palavras-chave: Arte, Bioarte, Biossegurança, Ciência, Mídia, Arte Transgênica.

 

Dolores Galindo: Desde os anos oitenta você escreve sobre arte, tecnologia e temas correlatos. Eu gostaria que você comentasse sobre o papel da mídia na elaboração do seu trabalho artístico?

Eduardo Kac: O que eu quis fazer nos anos oitenta foi ao mesmo tempo criar a obra e paralelo à produção das obras de arte, criar as condições para que a obra fosse recebida. Em outras palavras, criar um espaço crítico, um espaço de recepção da obra e para isso eu escrevi regularmente para jornais, Jornal do Brasil, jornal O Globo e Folha de São Paulo, sobretudo. Então eu publicava artigos sobre arte, tecnologia, arte e tecnologia, literatura, literatura e tecnologia. Aspectos da transformação social causados pela tecnologia também me interessavam, então, por exemplo, no meu livro Luz & Letra [Editora Contra Capa, Rio de Janeiro, 2004], que reúne os meus textos dos anos 80, você vai ver um artigo sobre a nova imagem do corpo tornada possível pelas tecnologias médicas da visualização – como termografia, ressonância magnética, e tomografia. Então o artigo não era sobre a arte propriamente dita, mas era um artigo sobre novas maneiras de representar o corpo que sempre foi uma questão da arte. Há outros exemplos. Então eu sempre trabalhei nesse sentido por isso eu sempre escrevi muito para tanto criar a obra quanto para criar um espaço de recepção e de formação de opinião.

Dolores Galindo: Como opera no cotidiano o “fazer” de um trabalho que envolve biotecnologia: o acesso ao laboratório, a algum profissional que domine técnicas específicas...

Eduardo Kac: É como para qualquer artista contemporâneo. Pense no trabalho de um artista como Richard Serra (1) que trabalha com imensas placas de metal; nenhum artista vai ter um ateliê onde essas placas cabem... Ele trabalha com estaleiros onde são feitos navios e ele tem uma equipe que faz processamento de informação. A especificidade é inerente àquilo que o artista quer fazer. A equipe vai ser sempre específica para sua prática. A vasta maioria dos artistas contemporâneos trabalha com dispositivos, equipes. Mas isso também não é uma novidade, Rafael e Rebrandt também tinham equipes. Tradicionalmente artistas trabalharam com assistentes, aprendizes, equipe etc. Andy Warrol.... Os artistas contemporâneos trabalham com assistentes ou equipes técnicas, especializadas na área que eles querem manipular, seja computador, vídeo, filme, fabricação de objetos, construção de ambientes, produção de dispositivos eletrônicos e assim por diante. A bioarte não é exceção.

Dolores Galindo: Você vê alguma especificidade em trabalhar junto a cientistas? Vê alguma diferença com relação a outros colaboradores?

Eduardo Kac: Sempre vai haver. O Richard Serra trabalha com imensas placas de metal, ele trabalha com uma pessoa que faz o cálculo para a peça não cair e no estaleiro com o pessoal de engenharia para fazer as dobras de metal. Bem, há diferenças em função da especificidade daquela prática. Como é central à minha plataforma de trabalho a criação de seres que não existiam na natureza antes da criação de uma obra específica, isso traz questões inerentes a este tipo de trabalho Cada artista vai lidar com situações específicas.

Dolores Galindo: Você poderia comentar um pouco sobre as especificidades desses problemas...

Eduardo Kac: Bom, na verdade cada obra tem uma singularidade, um conjunto de situações que lhe são particulares. Mas talvez o que seja comum a todas seja esse processo de concepção que envolve a questão da viabilidade: tive uma idéia, será que dá pra fazer isso? E as etapas materiais de execução e o tempo que demora até o produto final. Bom, dá pra fazer, é possível. Já foi feito algo parecido que possa servir como referência? Não. Há garantia de que vai dar certo? Não, porque não foi feito. Há uma probabilidade de que pode dar certo? Há. Como é possível minimizar a margem de erro? No caso de um mamífero, de um animal que tem sistema nervoso, de um ser vivo que tem sistema nervoso, tem que ter certeza de que não vai haver dor, não vai haver sofrimento. Então há uma questão ética que é intrínseca ao processo de criação e há a questão material também, isto é: como executar isso? Onde está a competência técnica especializada para executar esse trabalho... Mas tudo isto é secundário, no sentido de que os detalhes técnicos estão sempre a serviço da minha visão estética. É a minha busca estética que guia o processo de resolução material de uma obra — e nunca o contrário.

Dolores Galindo: Mas, no caso, por exemplo, da criação da Alba (2) com quem estava a competência técnica?

Eduardo Kac: a competência técnica sempre está com aquele indivíduo que possui a competência técnica para aquilo. Porque veja bem, o mundo da ciência é um mundo especializado. Um cientista que trabalha com planta, trabalha com aquela planta, planta da mostarda. Ele não conhece os procedimentos específicos, digamos, da alface, do tomate, etc. Uma pessoa que trabalha com coelho não sabe a particularidade do genoma do porco. O universo da ciência é muito especializado e o artista não trabalha assim. O artista tem especificidades intelectuais, emocionais, filosóficas e os instrumentos estão a serviço de uma visão maior. Então é isso, a especificidade técnica sempre vai estar com aquele indivíduo que é especializado naquele campo. Na verdade, não é o indivíduo porque, por exemplo, o Move 36 (3), a planta do Move 36, eu criei a seqüência genética, enviei por e-mail para um sujeito no Arizona que fez a síntese, em seguida ele me mandou aí eu mandei para um laboratório em Dakota do Norte. A seqüência do tomate veio de uma Universidade da Califórnia e isso foi mandado para Dakota do Norte; lá eles juntaram os dois e isso foi mandado para um outro laboratório da Califórnia onde finalmente isso foi integrado a uma célula de planta e a transformação foi feita. Depois, as sementes me foram enviadas para Chicago. E porque isso? Porque cada um desses lugares tinha o conhecimento específico para fazer aquele tipo de trabalho e não um outro. Então eu sou o compoitor e o maestro, fico comandando os músicos; eu crio uma partitura, eu componho uma música e orquestro quem que vai tocar qual instrumento...

Dolores Galindo: Ao entrar nesse meio, você vai também entrando em contato com uma série de regulações que foram criadas para esse campo específico.

Eduardo Kac: Eu tenho permissão do USDA (5).

Dolores Galindo: Como é que foi o processo de obtenção de licença?

Eduardo Kac: Você pede permissão, explica o que você vai fazer e eles enviam a permissão, daí você tem um número e quando você manda de um lado para outro você escreve: “permissão USDA seguido do número da permissão”. Mas, isso não me dá liberdade para fazer qualquer coisa com isso. É uma permissão para você produzir aquele ser e move-lo de um estado a outro, protegido e tal.

Dolores Galindo: Você obteve esta permissão na qualidade de artista?

Eduardo Kac: Sim.

Dolores Galindo: Você poderia falar um pouco para mim sobre o tipo de autorização que você obteve nos Estados Unidos para o Move 36?

Eduardo Kac: No percurso de fazer esse trabalho, eu tinha que mandar a semente da Califórnia para Chicago, aí você tem que ter permissão para cruzar a fronteira entre estados.

Dolores Galindo: Você enfrentou algum problema?

Eduardo Kac: Com o Move 36 não. Tive problemas com a Alba na França...

Dolores Galindo: Como foi isso? Até hoje eu não entendi bem o que aconteceu no caso da Alba...

Eduardo Kac: Acho que ninguém entendeu muito bem. Talvez nunca se entenda essa história. Eu também não entendo porque o diretor do laboratório censurou... Talvez ele estivesse preocupado que a obra [GFP Bunny] pudesse ter alguma conseqüência negativa para o laboratório, como o Itaú estava preocupado originalmente com minha obra Cápsula do Tempo  (5), e que isso pudesse afetar a imagem da instituição. No fundo é isso, quando uma instituição proíbe alguma coisa é porque ela está preocupada que aquela obra tenha conseqüências negativas para a sua imagem e, sobretudo, seus negócios. Mas, se esta preocupação se justifica ou não, se tem fundamento na realidade, já é uma outra questão. Em 1948, a rádio nacional francesa encomendou e depois, ao escutar a obra, censurou a obra radifônica Pour en finir avec le jugement de dieu de Artaud.  A obra hoje é um clássico. Naquele caso, foi a instituição que encomendou a obra ao artista. No meu caso, foi o artista que encomendou a obra à instituição. Não havia recurso judicial porque o trabalho foi feito através de acordo oral.

Dolores Galindo: Você considera necessária a formulação de legislação específica para a manipulação de material biológico por artistas?

Eduardo Kac: Não. Vários artistas também são professores, vários cientistas são professores nas universidades. Não vejo necessidade de uma legislação especial para o artista, eu acho que basta reconhecer o direito que o artista tem de trabalhar com materiais, materiais que se integram ao fazer da arte. Assim como o educador, ele não precisa de uma licença especial para comprar materiais liberados para uso no sistema educacional. Hoje mesmo nos Estados Unidos existe um brinquedo para crianças acima de 10 anos que é um pequeno laboratório de biogenética, de plástico, mas separa DNA de cebola e faz outros pequenos procedimentos. Se chama Discovery DNA Explorer Kit e custa oitenta dólares. Crianças têm pequenos laboratórios de plástico em casa...

Dolores Galindo: Eu vejo que a cultura artística não é muito preocupada em legislar e os processos de regulação em bioética e biossegurança foram formatados tendo como eixo princípios de relevância científica. Então temos aí possíveis impasses quando artistas se vêem impelidos a justificar seus trabalhos junto a comissões de bioética. No Brasil, por exemplo, não sei como um artista pode preencher um formulário para aprovação por comitês de bioética e obter autorização.

Eduardo Kac: Por que se pergunta qual o benefício que vai ser extraído de uma obra de arte? O artista pode dizer que é um benefício cultural, filosófico, de revelar potencialidades até então não vislumbradas no campo da cultura etc. O artista pode preencher o formulário, mas será que o comitê de bioética vai compreender? Porque são profissionais de áreas distintas. Os médicos têm um vocabulário próprio para explicar fenômenos num nível de detalhe que escapa ao leigo e toda disciplina tem seu próprio vocabulário. Para superar este tipo de problema e outros, hoje vemos o novo campo da Medical Humanities, ou Ciências Humanas e Médicas. Em princípio, não haveria como esperar que um profissional de uma área X tivesse um amplo domínio e um amplo estudo num campo Y. Isso também é um problema educacional porque a gente aprende na escola física do século XX, Biologia do século XX ou XXI, Química do século XX e XXI, mas a arte que se aprende na escola é uma coisa absolutamente tradicional e mesmo assim muito pouco. As crianças não crescem expostas às grandes revoluções na arte como elas crescem expostas às grandes revoluções da física e da química...

Dolores Galindo: Você tem acompanhado a mobilização Arte e Tecnologia no Brasil?

Eduardo Kac: Sim. Um pouco.

Dolores Galindo: Pois bem, uma das propostas é incluir uma linha entre os segmentos passíveis de financiamento, a bioarte e nanoarte que estariam abarcadas num segmento chamado arte e ciência. E a partir disso eu gostaria de saber se você considera importante estar conversando com as entidades da área de biossegurança? Por que o que o que se está pedindo no Brasil é a criação de um espaço de política governamental de incentivo pra este tipo de arte... Você conhece algum movimento semelhante em outros países?

Eduardo Kac: Nos Estados Unidos, de maneira geral, o governo só regula as instituições que recebem financiamento direto do governo. Ainda assim, tirando as proibições a nível federal, as instituições financiadas têm a incumbência de se auto-regular. Então, desde que o façam, o governo não interfere. Na França você tem políticas de apoio do governo à arte criada com novos meios. O governo francês está no momento se preparando para incentivar também o mercado da arte criada com novos meios, reduzindo as taxas de venda . E também reduzindo as taxas de jovens artistas nos primeiros cinco anos de sua vida profissional. Não se deve singularizar a bioarte com regras especiais, mas reconhecer a liberdade do artista de trabalhar com os materiais de sua escolha e incluir a bioarte em políticas de apoio à arte como um todo.

Dolores Galindo: No caso do governo francês, isso inclui a manipulação de materiais biológicos?

Eduardo Kac: Materiais biológicos eu acho que não de forma explícita, mas também não creio que haja proibição explícita. No fundo, a bioarte é uma arte feita com um meio de criação recente. Bem, na verdade, é um meio de criação que se envolve com a história do planeta que é a vida, mas os procedimentos de manipulação da vida a nível molecular direto é que são mais recentes. Essa é uma questão também: o meio é a vida ou o meio são os instrumentos de manipulação da vida? Qual o meio de criação da videoarte? São as imagens em movimento ou é toda uma série de dispositivos que permitem manipular essas imagens em movimentos? Ou se poderia dizer que o meio é composto pelos dois? O meio da pintura é a tela ou a tinta? Os dois...

Dolores Galindo: Você considera interessante à medida que a bioarte está sendo incluída como política governamental no Brasil promover um espaço de discussão entre artistas e representantes da área de biossegurança? Pergunto por que não sou artista e me localizo nessa fronteira que é terra de ninguém, de modo que estou consultando as pessoas que entrevisto para saber se vale a pena fazer este diálogo.

Eduardo Kac: Eu não sei. Eu não penso muito sobre essas coisas, na verdade. Eu não sei o que te dizer. Eu busco maneiras de criar meu trabalho e exibir meu trabalho, não penso muito sobre isso... Eu acho que há pessoas mais competentes para lidar com esse problema do que eu. Qualquer coisa que ajude, que torne a criação e a divulgação possíveis é bom.

Dolores Galindo: Você vê o ensejo de um campo de bioarte no Brasil?

Eduardo Kac: Que eu saiba não tem ninguém fazendo no Brasil ainda, mas com certeza surgirão artistas que farão bioarte no Brasil.

Dolores Galindo: Que eu saiba também não. No último prêmio Sérgio Motta houve um segmento arte e ciência, mas não foram premiados trabalhos em bioarte.

Eduardo Kac: É porque não há um mercado que venda os materiais de trabalho publicamente no Brasil. Os meios de produção estão concentrados em agências governamentais. Mas isso não justifica porque o artista poderia trabalhar dentro de uma agência governamental, mesmo que não haja mercado onde o artista possa comprar os dispositivos. O artista poderia estar trabalhando numa universidade como Waldemar Cordeiro (6) trabalhou com Giorgio Moscati em 68 na Universidade de São Paulo (USP) para fazer arte por computador. Também não havia mercado para computadores pessoais e ele foi onde o computador estava. Onde estão os procedimentos biotecnológicos no Brasil? Nas universidades. Então um artista que está trabalhando no Brasil tem que trabalhar numa universidade. Não que ele tenha que ser empregado da universidade, mas ele tem que fazer uso daqueles recursos disponíveis nawuele espaço. Ou trabalhar como alguns artistas também trabalham nos Estados Unidos, não necessariamente com engenharia genética, mas com outras maneiras de você manipular o genoma tais como a hibridização que é uma prática muito antiga. O George Gessert (7), por exemplo, que é o grande pioneiro já no sentido contemporâneo começou a hibridizar já no fim dos anos setenta. Você inventa suas plantas, suas flores, usando uma técnica que remonta a milênios e é um trabalho muito interessante.

Dolores Galindo: A minha intenção com a nossa conversa de hoje seria saber um pouco como é a sua prática no trabalho de biotecnologia, como está sendo sua interação com cientistas, se tem enfrentado problemas, se acha importante lutar por uma legitimidade legal da bioarte no Brasil para acesso a materiais biológicos...

Eduardo Kac: Cada obra tem uma história. Cada obra é tão diferente da outra em todos os sentidos.

Dolores Galindo: Você poderia me contar uma destas histórias?

Eduardo Kac: A primeira proposta de arte transgênica foi de 1998 (8), o cachorro, e até hoje não existe fertilização in vitro para o cachorro, então a minha tentativa de criar um cachorro fluorescente permanece em limbo por conta do fato de que a tecnologia não chegou aonde eu quero estar. Já o Gênesis foi um esforço hercúleo para criar aquele tipo de trabalho em 1998 e mostrar em 1999...

Dolores Galindo: Como foi para criar o Gênesis?

Eduardo Kac: Foi trabalhar com cientistas, trabalhar com laboratórios comerciais. O gene sintético sozinho custou oito mil dólares sem falar o resto todo.

Dolores Galindo: Como você conseguiu financiamento?

Eduardo Kac: Não tem nada particular. Esses detalhes práticos da produção na minha história pessoal não têm nada de particularmente glamoroso ou curioso. Eu acho que é igual para todo mundo e todo mundo tem que buscar alternativas para financiar seu trabalho. E quais são as maneiras? Ou uma instituição te encomenda a obra ou a instituição encomenda e financia parcialmente ou você vende um trabalho, ou você obtém apoio de uma fundação ou você tira do próprio bolso ou uma combinação desses recursos.

Dolores Galindo: E no caso do Gênesis?

Eduardo Kac: Foi encomendado pela Ars Eletrônica que é aquele evento anual na Áustria, então eles financiaram.

Dolores Galindo: Por fim, eu gostaria de uma orientação pragmática sobre o que chamar de bioarte? Devo nomear como bioarte mesmo o trabalho que não envolva técnicas de biotecnologia que resultem em produtos transgênicos?

Eduardo Kac: A Bioarte tem várias manifestações e quem seria o árbitro para dar os limites? Já em 1994 eu comecei a trabalhar diretamente com os processos da vida, na obra Ensaio Sobre o Entendimento Humano, e nada havia aí de transgênico. Hoje, porém, para mim, a criação de novos seres que não existem na natureza é a região mais radical e é por isso que ela me interessa, é a região mais controversa, menos conhecida, mais problemática, mais difícil, que envolve o elemento relacional que me interessa. Não me interessa tanto criar coisas e objetos por si só, e sim seres e relações, seres que podem estabelecer relações. Um ser vivo que tem seus próprios interesses, e que tem um umwelt, um universo perceptivo, sensorial, cognitivo, pode estabelecer relações baseadas em seus próprios interesses e não estar condicionado pelos meus interesses. E aí eu acho que é uma dinâmica muito interessante. Há, sem dúvida, outras formas de interação extremamente interessantes que não passam necessariamente pela questão da consciência como a entendemos nos animais, como no caso de nossa relação com plantas.

Dolores Galindo: Você acha que conseguiria fazer o tipo de trabalho que você faz no Brasil?

Eduardo Kac: Hoje? Veja bem, uma grande maioria de artistas brasileiros trabalha internacionalmente, Daniel Senise (9) tem ateliê em Nova Yorque, Ernesto Neto (10) e Beatriz Milhazes (11) estão expondo no mundo inteiro o tempo todo e assim por diante. Os artistas trabalham no palco internacional, então o que significa isso? Se você tem um apartamento no Rio de Janeiro ou em São Paulo e um ateliê em Nova Yorque, o que significa criar no Brasil? E qual seria o significado de ter que criar no Brasil. Hoje há um espaço global. O artista pode trabalhar em princípio em qualquer ambiente. Agora se a pergunta é: existe no Brasil, dentro do território geográfico da República Federativa do Brasil recursos materiais para fazer certos tipos de trabalho? Talvez não. Mas, o Brasil participa de projetos internacionais de Genoma, então até certo ponto sim. Existem laboratórios de transgênicos, inclusive no Rio se criam ratos transgênicos, por exemplo, Então certas coisas, sim, são possíveis. A USP cria plantas transgênicas, então até certo ponto sim.

Dolores Galindo: E haveria um espaço relacional para dar conta disso na comunidade acadêmica?

Eduardo Kac: É como eu te falei. Meu empenho sempre foi de criar a obra e também o espaço de crítica, de reflexão, através de artigos, livros, apresentações públicas e outras forma de intervenção social. Eu sempre tive essa preocupação. Não só fazer a obra, fazer a obra e o espaço no qual a obra vai se inserir. Essa preocupação vem não de um messianismo, de um didatismo, não é nada disso. É o reconhecimento de que por eu estar criando algo que não existia antes há a necessidade de criar um espaço no qual possa existir. Então eu acho que o artista tendo esta consciência, vai trabalhar no sentido de criar aquele espaço e aí, você trabalhando consistentemente, ao longo dos anos esse espaço vai surgindo aos poucos.

 

* Entrevista realizada em 27/07/2005 na cidade de São Paulo.

 

(1)  Informações sobre o artista podem ser obtidas no site http://www.guggenheimcollection.org/site/artist_work_md_144A_7.html

(2)  Para informações sobre o trabalho GFPbunny consultar http://www.ekac.org/gfpbunny.html

(3)  Entrevista com Eduardo Kac e informações em português sobre a obra Move 36 podem ser obtidas no site da 26ª Bienal de São Paulo http://bienalsaopaulo.globo.com/26/professores/26profEK.asp

(4)  Endereço eletrônico da agência governamental mencionada: http://www.usda.gov/wps/portal/usdahome

(5)  O trabalho Time Capsule de Kac, que envolvia o implante de um microchip ao vivo na televisão e na web, não foi exposto no Itaú Cultural em 1997 em função da avaliação do setor jurídico da instituição. Dado isto, foi exposto na quadra adjacente na Avenida Paulista, na Casa das Rosas, em 1997, dentro da mostra Arte Suporte Computador tendo ampla divulgação midiática.

(6)  Breve biografia sobre Waldemar Cordeiro pode ser obtida na Enciclopédia de Artes Visuais do Itaú Cultural: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/arttec/index.cfm?fuseaction=detalhe&cd_verbete=5932

(7)  No dicionário organizado pela revista Leonardo, podem ser obtidas informações sobre o artista http://mitpress2.mit.edu/e-journals/Leonardo/rolodex/gessert.george.html

(8)  Kac, Eduardo. “Arte Transgênica”,          Revista Ars, N. 3, 2005, publicada pela Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. Originalmente publicado em Leonardo Electronic Almanac, Vol. 6, N. 11, December 1998.

(9)  Informações biográficas, alguns trabalhos e histórico de exposições podem ser acessados em http://www.artnet.com/artist/15325/daniel-senise.html

(10)                Notas iniciais sobre o artista podem ser obtidas em http://forumpermanente.incubadora.fapesp.br/portal/.convidados/ernestoneto/

(11)                Beatriz Milhazes por Adriano Pedrosa: http://www.bombmagazine.com/milhazes/milhazes.html

  (fim)


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