Estado de Minas, Domingo, 31 de julho de 2005.


O carioca Eduardo Kac, pioneiro na arte transgênica e criador de Alba, a polêmica coelha geneticamente modificada, analisa questões éticas e estéticas do mundo contemporâneo

Rompendo as Dimensões

Mariana Peixoto

De São Paulo

“Se eu sei o que estou fazendo, não tenho razão para fazer.  Não quero desenvolver o que já existe”.  O desafio do artista Eduardo Kac, de 43 anos, foi lançado ainda na década de 80, quando o carioca deixou o País rumo aos Estados Unidos para se aventurar na arte digital e transgênica.  De lá para cá colecionou uma série de polêmicas, a mais conhecida delas ao criar uma coelha, modificada geneticamente, que emitia uma luz verde.  Alba, o nome do animal, ganhou o mundo ao ser protagonista de uma campanha que pedia a sua liberação, já que o laboratório na França que havia se associado a Kac para a experiência proibiu de levá-la para viver com ele em sua casa, em Chicago.

Kac foi um dos artistas convidados para o workshop do Motomix 2005, que terminou ontem no Museu da Escultura, em São Paulo e reuniu 22 participantes (entre paulistas, mineiros, cariocas e gaúchos) em uma imersão de uma semana em música, arte e tecnologia.  “O que fizemos foi fazer com que as pessoas saíssem do ordinário pois, como disse o grande artista Flávio de Carvalho, a rotina é uma ilusão e a descoberta de novas possibilidades espanta essa ilusão.”

Amanhã ele retorna aos EUA, onde uma série de projetos o espera, inclusive uma escultura de Alba, mais um trabalho gerado a partir da experiência com o animal.  No entanto, não fica muito tempo por lá, já que em 27 de de setembro inaugura duas exposições em Paris:  uma coletiva na Maison Européenne de la Photographie e uma individual na Galerie Biche de Bere.  Nesta última será exposto Lance 36, obra que integrou a Bienal de São Paulo de 2004.  A instalação, que faz referência ao movimento feito pelo computador Deep Blue, que jogou contra o campeão mundial de xadrez Gary Kasparov em 1997, também dá nome ao livro que será lançado na França no mesmo período.  Na entrevista a seguir, Eduardo Kac fala sobre ética, tecnologia e a suposta complexidade de sua obra.  “Se você faz um trabalho que introduz um repertório novo, é inevitável que ele não esteja difundido.”

Quem é Eduardo Kac

Nascido no Rio de Janeiro em 1962, Eduardo Kac deu o primeiro grande salto de sua carreira em 1983, ao criar a holopoesia, linguagem poética que explora as flutuações formais, semânticas e perceptuais da palavra/imagem no espaço-tempo.

Pioneiro da arte digital e transgênica, ele, a partir de 1986, desenvolveu a arte de telepresença quando criou um robô de controle remoto através do qual as pessoas poderiam interagir.  Em 1989, mudou-se para Chicago, onde vive até hoje, para fazer mestrado em artes plásticas na The School of the Art Institute (atualmente é professor e diretor do Departamento de Arte e Tecnologia dessa instituição).  Uma de suas obras mais conhecidas leva o nome de Time Capsule (1997), em que um microchip foi implantado em seu calcanhar esquerdo.  A obra  levantou problemas sobre ética e a relação entre identidade e memória artificiais armazenadas dentro do corpo humano.  Mas foi com GFP Bunny (2000), que o nome de Eduardo Kac entrou no centro de uma série de polêmicas.  Através de engenharia genética, ele criou uma coelha que continha uma proteina fluorescente verde.  Sob a luz azul, Alba, como a coelha foi chamada, emitia uma luz verde.  O objetivo dele era levá-la para viver com ele em Chicago mas o laboratório na França com quem realizou a “obra” não o permitiu.  Por causa disso, fez a campanha Free Alba! que consistiu em uma série de intervenções, como uma coleção de pôsteres afixados em Paris, livro e camisetas.  Trabalhos posteriores do artista têm como tema a coelha.  Kac não sabe que destino ela teve.”

Em Livros

A bibliografia sobre a obra de Eduardo Kac é extensa e vai muito além do português.  No Brasil, seu mais recente livro é Luz & Letra - Ensaios de arte, literatura e comunicação (Contra Capa, 432 páginas), lançado no final de 2004.

A publicação abrange textos de Kac publicados na imprensa carioca e paulista entre 1982 e 1988, 150 fotografias, introdução de Abraham Palatnik e prefácio de Paulo Herkenhoff.

Tecnologia

“Hoje o meu trabalho não existe sem tecnologia.  A guinada foi em 1983, pois até então eu fazia um trabalho que era mais performático e literário.  Lancei a poesia holográfica naquele ano, era um projeto de inventar uma nova linguagem poética a partir das potencialidades específicas de holografia.  Não se trata de pegar um soneto de Shakespeare e fazer um holograma, pois seria mais fácil lê-lo em um livro.  O que me interessava não era a forma externa, mas a sintaxe.  Eu queria escrever a poesia da era da informação, que não poderia existir na página impressa.  Mas a tela do computador me parecia muito próxima da bidimensionalidade do papel, sobretudo nos anos 80.  Então fui me apropriar da holografia para criar formas soltas no espaço, que mudavam de posição relativa ao seu ponto de vista, enfim, coisas que o substrato físico não pode fazer.”

Poesia Holográfica

“Ela difere de todas as práticas teóricas que a gente conhece.  No Brasil, por exemplo, você tem a poesia modernista, que é coloquial, e uma série de outras formas.  Por não ser mais uma poesia da galáxia de Gutenberg, é luz no espaço/tempo que demanda performances de leitura.  A holográfica desafia a lógica da poesia impressa, pois as palavras nunca são estáveis.  Toda experiência de leitura é pessoal, mas na holografia, além da experiência, há um engajamento corporal, você está meio que dançando em frente ao texto, não lê apenas com os olhos, mas com o corpo inteiro.”

Brasil

Saí daqui para poder continuar trabalhando.  Criei no Brasil, em 1987, um poema holográfico digital (que leva o nome de Quando?).  Isso era impossível, mas felizmente eu tinha 25 anos e não sabia que era.  Se você for fazer hoje, no século XXI, é uma empreitada.

Há 20 anos, era um delírio.  E ficou muito patente depois de fazer o trabalho que a dificuldade de continuar era realmente monumental.  Tinha que buscar meios de continuar crescendo, pois o meu processo de crescimento estava mais rápido do que a minha habilidade de manifestar esse crescimento em uma obra.  Chicago era onde havia os melhores recursos para continuar a desenvolver a poesia holográfica.”

Ética

“O artista tem que fazer aquilo que acha que deve.  Você pode negar a questão ética e dizer não, o artista não precisa se preocupar com isso.  Mesmo quando a está negando, você está assumindo uma postura ética.  A questão fundamental é a seguinte:  você não pode - e isso já é uma contribuição minha - criar um ser vivo, que é o que faço, no contexto da arte e pensar e tratá-lo como um objeto.  É preciso reconhecer que na arte transgênica o papel do artista deixa de ser a criação do objeto e passa a ser a criação do sujeito.  Isso é uma ruptura sem precedentes na história da arte.  Embora o governo não tenha regulado ainda, já que o transgênico no Brasil ainda está em debate, entra muito contrabando da Argentina.  Numa certa perspectiva, a invenção de novas formas de vida já se tornou corriqueira.  A gente é que não percebe.”

Complexidade

“Se você faz um trabalho que introduz um repertório novo, é inevitável que ele não esteja difundido.  Uma analogia seria o conhecimento de idiomas. Se o artigo for escrito em aramaico, as pessoas não vão entendê-lo.  A percepção de complexidade é de contexto, do momento, mas não é intrínseco à obra.  Paralela à criação da obra eu sempre escrevo tentanto não explicá-la, mas fazer outra viagem de reflexão.  A obra não ilustra a teoria nem a teoria explica a obra.  São duas modalidades de experiência, no caso da teoria cognitiva e da obra sensorial, que se complementam, tornando tudo mais rico.”

Alba

“O projeto inicial era de que ela viesse para minha casa.  Como houve censura, fiz uma campanha na tentativa de mobilização entre a opinião pública que revertesse à decisão.  O que fiz foi reconhecer que a recepção daquele processo inicial se constituisse num novo material de criação artística.  Desde 2002, dou ênfase à recepção, que se converteu em material de criação.  Sobre a coelha, fiz desenhos, fotos, livros, obras na internet, e agora estou trabalhando numa pequena escultura dela.

Tudo isso é uma reflexão sobre a recepção que acabou se tornando matéria prima.”

Caminho

“Sempre me interessei em descobrir, inventar caminhos.  Aprecio a obra de outros artistas, mas meu interesse não é desenvolver o que já existe.  Meu interesse é o engajamento da transformação, levar a cultura para outros caminhos, terrenos inauditos, não expressar um dado momento.  Se eu sei o que estou fazendo, não tenho razão pra fazer.  Se o resultado vai coincidir com o projeto, como na arquitetura, não me interessa.”


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