Eduardo Kac: a arte da telepresença na I Bienalde Artes Visuais do Mercosul

Evelise Anicet Ruthschilling

As novas tecnologias têm o potencial de expandir nossa imaginação.As mentes das crianças que deixam de permanecer hipnotizadas àfrente da televisão estão sendo modeladas pelo acesso àInternet. Então se torna crítico que artistas questioneme procurem influenciar o rumo da cultura digital, para além daspadronizações oficiais e econômicas. Artistas que exploramas novas tecnologias de maneira pessoal, inteligente e inovadora podemnos oferecer novos modelos do mundo no qual estamos imersos. Essas possibilidadestrazidas pelo avanço tecnológico são exploradas porEduardo Kac, artista plástico brasileiro radicado nos Estados Unidos,interessado por questões inquietantantes do presente, tais comoos conceitos de fluidez, de intangibilidade, construção deidentidade, não-linearidade e de imaterialidade . Eduardo Kac estápresente na I Bienal de Artes Visuais do Mercosul, apresentando sua obra"Rara Avis" (Avis Rara, em português), que é umainstalação eletrônica de telepresença, ondeKac realiza uma proposta artística em que o espectador éseu parceiro na realização da obra ­­ portanto, trata-sede um trabalho interativo.

"Rara Avis" foi inicialmente projetada para uma exposiçãoque fez parte do segmento cultural da Olimpíada de Atlanta em agostode 1996, sendo novamente apresentada em Austin, Texas, em janeiro de 1997,e em Lisboa, em abril de 1997, e agora está em Porto Alegre até30 de novembro, instalada no sexto andar da Casa de Cultura MárioQuintana. Kac propõe que o espectador experimente a sensaçãode temporário desligamento da condição presente eo deslocamento de sua mente para o corpo de um robô. Investiga, assim,os limites das possíveis relações do corpo humanocom a máquina. Provoca a exploração sensóriaque parte do material para o imaterial e vice-versa.

Como Eduardo Kac faz sua idéia se tornar realidade? A princípioele mantém sempre a mesma postura em todos seus trabalhos quantoà escolha da mídia a ser empregada na comunicaçãode suas idéias. Ele considera todos meios de expressão àsua disposição, criando experiências singulares a partirda mescla peculiar de espaços físicos e telemáticos,e de elementos orgânicos e eletrônicos. "O conceito decada trabalho é que dita o meio que emprego", diz Kac. E criticao uso gratuito da tecnologia, quando aplicada apenas como recurso de agregarvalor a obras vazias de sentido. Se não domina os meios, ele tratade aprendê-los, além de não ter constrangimento decontratar especialistas para ajudá-lo a veicular da melhor maneirasua idéia.

"Rara Avis" é um dos mais complexos trabalhos de telepresençaaté hoje apresentados. Esta modalidade artística, da qualKac é o pioneiro, vem lhe conferindo reconhecimento internacionalpor sua participação exitosa em várias exposições,simpósios e festivais nos Estados Unidos, Europa, Austráliae América Latina.

"Rara Avis" é realizada através de um requintadosistema mediado por computador, que busca trabalhar a percepção,memória e comunicação do público participante.Na concepção de Kac, "Rara Avis" não éuma obra sobre tecnologia e sim sobre pessoas e a comunicaçãoentre elas. Constitui-se , a primeira vista, de uma grande gaiola com 30rouxinóis e uma arara-robô. Do lado de fora da gaiola existeum pedestal que suporta uma televisão que transmite as imagens captadaspelos olhos do robô, e, noutro pedestal está um capacete derealidade virtual a disposição dos visitantes. Esta éa parte visível dentro da galeria. Quando o capacete é colocadosobre a cabeça, a pessoa tem sua percepção desestabilizada,pois passa a enxergar com os olhos da arara-robô que estádentro da gaiola. Pode, inclusive, ver seu próprio corpo do ladode fora. Se mexer a cabeça, a arara imita o mesmo movimento. A pessoase vê, então, em meio a trinta rouxinóis dentro deuma gaiola. A impressão é que não apenas a visãofoi transportada para a arara, mas toda nossa mente. É uma experiênciainusitada, passível de provocar diferentes reaçõesno espectador. É a sensação de deslocamento sem tersaído do lugar.

Mas a obra não se restringe ao que acontece somente dentro dagaleria. Quando a pessoa mexe a cabeça, sem se aperceber, acionamecanismos dentro da Internet. Os olhos do robô são duas pequenascâmaras de vídeo: uma digitaliza em tempo real as imagensem preto e branco e em baixa resolução e as envia àInternet, tanto através de videoconferência interativa quantona Web. Estas imagens serão captadas nos canais mais democráticosda rede.

A outra digitaliza em tempo real imagens de video em cores e em altaresolução que poderão ser captadas por pessoas quetenham equipamentos e softwares mais complexos, com acesso ao CU-SeeMea cores e também ao Mbone, ou Multicast Backbone, este últimoum sistema de elite dentro da Internet que conjuga as mais avançadasestações de trabalho com maior banda passante. Os participantesà distância receberão as imagens a cores, em alta resoluçãoe quase tempo real.

Por que o artista faz esta diferença? Por que Kac quer evidenciara natureza não-equalitária do desenvolvimento tecnológico.Mostrar que mesmo dentro de um sistema de redes também existem hierarquiase privilégios, e que a tecnologia preserva as discrepânciassociais. Particularmente isso incomoda quem acreditava ingenuamente que,pela primeira vez na história da humanidade tinha sido construídoum "sistema fora dos sistemas" onde a informaçãoestava acessível a todos. De repente notamos que, no estágioevolutivo em que nos encontramos, soa utópico pensar que a Internetseja uma rede eletrônica em que as pessoas que atuam estãodisposta a colaborar, comunicar e distribuir informaçõesà comunidade global por igual. Kac analisou os nodos da rede nomapa da Internet e notou que a distribuição é totalmentedesarmônica, com vários países tendo acesso apenasa tecnologias de rede pré-Internet e outras sem acesso de espéciealguma. Os continentes africano e sul-americano, por exemplo, têmuma densidade muito menor de nodos que o europeu ou norte-americano. Comopodemos falar de novas tecnologias e meios de comunicaçãoem escala global? As distâncias diminuem no plano cultural e físico,sem dúvida, mas permanecem intactas no plano social e político.Neste sentido, diz Kac: " a experiência simulada de uma novae temporária identidade no meu trabalho de telepresença indicaa necessidade de uma mudança qualitativa no uso da tecnologia decomunicação".

Outro aspecto a considerar é o das pessoas não captaremas informações da mesma maneira, o que provoca interpretaçõestão diferentes quanto ao número de pessoas que tiverem acesso.Na palavra de Kac :" isso sugere que a mediascape - ambiente altamentetecnológico em que vivemos - modula e define nossa percepçãode realidade e que a noção de realidade nunca é amesma para todos".

Os visitantes virtuais podem se conectar através de CU-SeeMee,quando estarão recebendo o som local da gaiola, assim como as imagensemitidas pelos olhos da arara-robô incorporada pelo espectador presenteque estiver usando o capacete no momento. Eles poderão, então,interagir, dialogando com o espectador local, que responderá sequiser e entender a língua que os participantes da Internet usarem.Este som será ouvido na galeria. Neste momento temos uma situaçãoem que o corpo do robô é compartilhado pelo espectador locale todos outros à distância, que podem ser centenas, se tornandoum espaço habitado por várias mentes ao mesmo tempo. Semdúvida este é o ponto "nevrálgico" da propostade Kac que gera uma forma de ser híbrido de homem-robô comatuação simultânea de muitas mentes.

Simone Osthoff, sua curadora e crítica de arte eletrônica,identifica importantes elos entre o trabalho de Kac e o legado dos neoconcretistasbrasileiros Lygia Clark e Hélio Oiticica, que, nos anos 60-70 fizeramnovas propostas perceptuais, sensoriais e participativas. No nosso entenderEduardo Kac desenvolve conceitos e preocupações que passampelo uso de suportes não originalmente artísticos para expressarsuas idéias. Podemos traçar um paralelo entre seu trabalhoe o de Lygia Clark, com sua investigação das alteraçõessensórias e experiências de interatividade com o espectador,que, no caso de Kac, são elaboradas com o uso das novas tecnologias.Podemos pensar também um elo com Hélio Oiticica, e sua idéiade incorporação referente aos "Parangolés",que para Hélio eram estruturas-extensões do corpo, assimdefinido por ele: "O parangolé não era, assim uma coisapara ser posta no corpo, para ser exibida. A experiência da pessoaque veste, para a pessoa que está fora, vendo a outra vestir, oudas que vestem simultaneamente as coisas, são experiênciassimultâneas, são multiexperiências. Não se trata,assim, do corpo como suporte da obra; pelo contrário, é atotal 'in(corpo)ração'. É a incorporaçãodo corpo na obra e da obra no corpo. Eu chamo de in-corporação"(Favareto, 1992, p.107).

O fato artístico construído por Kac está calcadona comunicação e relações humanas com a máquinaatravés do tecido imaterial eletrônico. Imaterial porque,diferente do que muitos visitantes podem pensar, a obra não épalpável, não é a gaiola com os pássaros dentro.A obra só existe no momento em que o espectador participa e assim,ao participar, determina ele mesmo a natureza de sua experiência.A arte telepresencial de Kac tende a apresentar mecanismos de comunicaçãoe de controle nas máquinas e nos seres vivos através de trocasvia redes de computadores e aparelhos teleguiados. Eduardo Kac faz tudoisso com muito critério. Ele tem a consiência de que a Internetexerce profunda influência na sociedade atual e futura.


Evelise Anicet Ruthschilling

Professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federaldo Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

E-mail: anicet@vortex.ufrgs.br

Data: 21 de Outubro de 1997.