Originalmente publicado na coluna Novo Mundo, revista digital Trópico, em 27 Nov 2001. <http://www.uol.com.br/tropico/novomundo_9_428_1.shl>


"Se se examina de perto o conceito de clonagem, vê-se que ele sempre existiu, que isso se produziu o tempo todo na reprodução em geral. De uma certa maneira, na família, na língua, na nação, na cultura e no ensino, na tradição, o que se busca é reproduzir, criando álibis para isso." Jacques Derrida, em "De Quoi Demain..." (com Elisabeth Roudinesco, Ed. Fayard/Galilée, 2001)

PÓS-HUMANIDADE

A coelhinha e a bioarte

por Giselle Beiguelman



Eduardo Kac discute ética e afeto no mundo dos seres criados em laboratório



Uma das páginas mais desconcertantes da filosofia contemporânea foi escrita
por Michel Foucault. Dizia que “é um reconforto e um profundo alívio pensar
que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem
dois séculos, uma simples dobra do nosso saber, e que desaparecerá, assim
que se encontre uma nova forma”.

Isso foi publicado em 1966, no livro “As Palavras e as Coisas” (o do ensaio
antológico sobre “As Meninas”, de Velásquez). Se você não leu, leia, pois
Foucault anunciava reflexões que estão na pauta do dia, nesses tempos de
transexualismo, Botox, Johnny Mnemonic, Michael Jackson, projeto Genoma e
muito silicone.

Recombinam-se agora as relações entre tecnologia e natureza, rumo ao
mundo dos seres livres do atavismo biológico. Um mundo pós-humano, onde
seremos talvez apenas uma população entre outras de avatares (personas
virtuais) e indivíduos gerados por manipulação do código genético.

Um mundo que já pode ser parcialmente observado e vivido, durante o
lançamento do mais recente projeto de Eduardo Kac, “O Oitavo Dia” (“The
Eight Day”), ocorrido no fim de outubro, na Arizona State University.

Brasileiro, carioca, nascido nos idos de 62 e vivendo desde 89 nos EUA, onde
leciona e pesquisa, ele é um dos mais renomados artistas envolvidos na
criação com novas mídias.

Dedicado à reflexão sobre arte e biotecnologia desde 1997, quando
apresentou “A Positivo” (“Positive A”), em Chicago, incorporou a engenharia
genética ao seu trabalho em 1999, tendo o início do projeto “Gênesis”, como
marco de sua incursão no que chama de arte transgênica.

“Gênesis” já rodou o mundo e foi exposto também no Brasil, no Itaú Cultural,
em 2000. Foi feito com um gene sintético, chamado por Kac de gene artístico,
produzido a partir da tradução de uma frase bíblica em código Morse. Essa
frase foi retraduzida na estrutura de DNA, dando vida a um gene artificial, o
qual foi injetado em uma bactéria.

A frase original, do próprio livro do Gênesis, era: “Que o homem domine os
peixes do mar e o vôo no ar e sobre todos os seres que vivem na Terra”.
Pela Internet, os espectadores podiam modificá-la, controlando a iluminação
ultravioleta do espaço e, com isso, causando mutações no código genético da
bactéria.

Kac introduzia aí novos elementos à discussão sobre poder e tecnologia, ética
e estética, chamando a atenção para o peso da tradição religiosa nas crenças
científicas e questionando todo tipo de heranças imutáveis. Um
questionamento que em “O Oitavo Dia” ganhou contornos ecológicos e
sociológicos.

Os títulos dos trabalhos (ambos baseados na história da Criação, do ponto de
vista bíblico) enunciam parte das motivações conceituais do projeto.

“São trabalhos que se referem de forma crítica a aspectos gerais da cultura
judaico-cristã, também presentes no budismo, com destaque para a crítica da
noção hierárquica da vida, que coloca o ser humano no topo e os outros seres
vivos abaixo”, disse Kac em entrevista a Trópico.

Pensando a profunda transformação cultural que a biotecnologia enseja, ele
lidou em “O Oitavo Dia” com uma população de criaturas fluorescentes
criadas em laboratório, que, vistas em conjunto, sugerem o núcleo de um
emergente sistema sintético bioluminoso.

Essas criaturas conviveram com um robô (o biobot), em um domo de vidro de
1,20 metros de diâmetro, compondo um ecossistema formado por plantas,
peixes, amebas e camundongos, todos frutos de uma alteração de seu código
genético.

A alteração do código genético foi causada pela introdução de um gene
artificial, responsável pela proteína GFP (Green Fluorescent Protein, proteína
verde fluorescente) e pelo próprio biobot (um robô que dispõe de um
elemento biológico ativo, no caso uma colônia de amebas-GFP que
funcionavam como suas células cerebrais).

Toda vez que as amebas se reproduziam, o robô se movia, suavemente, para
cima e para baixo, e se deslocava pela galeria acompanhando os momentos
de atividade, ascendentemente, e repouso, de forma descendente.

Era dada ao visitante a possibilidade de ver a instalação do ponto de vista do
biobot, ao interagir com a obra pela Internet, integrando o sujeito remoto
nesse ecossistema transgênico pelos olhos do ser robótico.

“Houve uma dinâmica muito interessante, na qual todos os organismos
afetaram os demais”, contou Kac em sua entrevista. “Um aspecto inesperado
foi que alguns camundongos gostaram de passar o tempo em baixo do biobot.
Outro aspecto interessante foi o encontro da rede de seres humanos na Web
com a rede de amebas dentro do corpo do biobot.”

Prestar a atenção nesse movimento é o que mobiliza o artista, explicando a
diferença entre os pressupostos da pesquisa genética e da arte transgênica
que pratica:

“Não me preocupo com a produção desses organismos em série. Não sou um
criador de animais, mas desenvolvo projetos de arte transgênica. Não são as
questões do objeto genético que me interessam, mas a invenção de temáticas
transgênicas sociais, que nos obriguem a refletir sobre novas relações” .

Relações que são éticas e afetivas e que se tornam centrais, quando se
lembra que entre “Gênesis” e “O Oitavo Dia”, ficou Alba, a coelhinha que teve
seu código genético alterado no laboratório de Jouy-en-Josas, na França, e
que protagonizou o polêmico “GFP Bunny”, do artista.

Albina, a coelhinha, nasceu em 29 de abril de 2000. Kac fala emocionado
como foi tê-la nos braços, quando nasceu: “Assim que a peguei no colo, se
aninhou, e instantaneamente me despertou a consciência da responsabilidade
que tinha com ela como ser vivo”.

E isso é importante, porque é aí que a emergente bioarte mostra sua
distância em relação aos projetos dantescos da eugenia nazista, que fizeram
uso da pesquisa genética para dar uma dimensão estética e política à
biologia.

“O que Mengele e os nazistas fizeram não foi experimentação genética. Foi
tortura sádica de seres humanos a serviço de uma agenda genocida. É
essencial desautorizar toda e qualquer aura de autenticidade científica do
nazismo. Não há nada no nazismo que seja propriamente científico. O que há
é abuso de idéias oriundas da ciência e da filosofia para fins totalitários”,
disse o artista.

Kac não conseguiu obter autorização para levar Alba para sua casa, em
Chicago. Isso já deu o que falar e continua dando. Resultou em uma
intervenção urbana do artista em Paris, onde afixou, entre 3 e 20 de
dezembro de 2000, uma série de pôsteres relativos ao assunto, e movimenta
um interessante livro multiautoral na Web, o “Free Alba!”, até hoje.

Mas ele gosta que se pondere bem a questão: “Proponho a presença em casa
de Alba, assim como de outros possíveis organismos, ainda por serem
imaginados e criados, não porque quero ter a casa cheia de seres
fluorescentes, mas porque reflito nas questões psicossociais dessa relação.”

Uma reflexão que mistura a psicologia de Humberto Maturana, especialista
em biologia da cognição, para quem o afeto emerge na medida em que é
criado o “domínio consensual”, à compreensão da “diferença que não é
indiferença, é responsabilidade", pressuposto do filósofo judeu Emanuel
Levinas.

Não se trata, portanto, de dizer que o afeto é a única forma de lidar com
questões éticas, e sim de reconhecer, diz Kac, “como já o fazem as
pensadoras feministas há décadas, a importância prática e intelectual do
contato físico, do afeto e do cuidado mútuo. No caso da arte transgênica, a
ênfase no aspecto relacional e ambiental também nos permite resistir a falsas
noções de determinismo biológico”.

Dá o que pensar, não dá não?



Giselle Beiguelman
É professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Autora de "A
República de Hemingway" (Perspectiva), entre outros. Desde 1998 tem um estúdio de criação digital
(desvirtual - www.desvirtual.com) onde são desenvolvidos seus projetos, como "O Livro Depois do Livro",
"Content=No Cache" e "Wopart". É editora da seção "Novo Mundo", de Trópico.


link-se
Eduardo Kac Web http://www.ekac.org/
Emanuel Levinas Web Page http://home.pacbell.net/atterton/levinas/
Humberto R. Maturana - http://www.gwu.edu/~asc/biographies/Maturana/
The Foucault Pages at CSUN -
http://www.csun.edu/~hfspc002/foucault.home.html
The Eighth Day - http://isa.hc.asu.edu/eighthday/about_html.html
Johnny Mnemonic - http://www.sciflicks.com/johnny_mnemonic/
Botox - http://www.dermnet.org.nz/index.html
Green Fluorescent protein Applications Page -
http://pantheon.cis.yale.edu/~wfm5/gfp_gateway.html
Free Alba! - http://sprocket.telab.artic.edu/ekac/bunnyadd.html


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